AS LEIS NO LIXO
19 de janeiro de 2018 às 16:42
Gaudêncio Torquato,
Montesquieu, em seus pensamentos, ensinava: “Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se são executadas as que há, pois existem boas leis por toda a parte”. E Sólon, o filósofo grego, ao ser perguntado se outorgara aos atenienses as melhores, saiu-se com esta resposta: “dei-lhes as melhores leis que eles podiam aguentar”. As duas pequenas lições calham bem no momento vivido pelo país.<br />
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Primeiro, por refletir o estado geral de anomia que toma conta da Nação. A quebra da ordem ronda os espaços nacionais, puxando a anarquia, a desorganização do clima institucional e a instabilidade social, sob uma gigantesca teia de difamação, calúnia, troca de ofensas. Segundo, pela constatação de que o nosso acervo normativo, considerado um dos mais avançados do mundo, parece não ser suportado por importantes segmentos da sociedade.<br />
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Fatos recentes escancaram as observações acima. Uma greve de policiais no Rio Grande do Norte foi considerada ilegal pela Justiça, com a determinação de “imediato” retorno ao trabalho das categorias nela envolvidas. Um desembargador chegou a ordenar que os comandantes das forças policiais prendessem os responsáveis “por incitar, defender ou provocar a paralisação”. A decisão deveria ser cumprida de imediato sob pena de uma multa diária de R$ 100 mil, montante a ser rateado entre as entidades à frente da greve.<br />
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<b>A PLANILHA DA ILEGALIDADE </b><br />
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Nessa última quinta-feira, o sindicato dos metroviários de São Paulo deflagrou uma greve geral, tendo como motivo um protesto contra a privatização de duas linhas do sistema. Um desembargador do TRT decidiu que 80% da frota deveriam circular nos horários de pico e, em caso de descumprimento, estabeleceu uma multa diária de R$ 100 mil. <br />
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A planilha de multas determinadas pela Justiça, nos últimos anos, tem se avolumado. Em 2014, os metroviários fizeram uma paralisação de 5 dias. A Promotoria de São Paulo pediu na época a aplicação de uma multa equivalente a 3,33% do salário mínimo dos grevistas, perfazendo o montante de quase R$ 355 milhões de multa indenizatória. Houve, ainda, o pedido de bloqueio das contas bancárias do Sindicato dos Metroviários. Os pedidos não foram atendidos. Mas outras decisões do Judiciário no sentido de punir “greves abusivas” não têm sido cumpridas. <br />
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As greves na administração pública, particularmente em setores de serviços essenciais, como saúde, educação e mobilidade urbana, devem se pautar em parâmetros especiais, a partir de danos que trazem para as comunidades. Os casos continuados de greves na administração pública e a ausência de cumprimento de decisões de juízes acabam corroendo a imagem do próprio Judiciário, a quem não se pode negar o resgate de papel de protagonista central na atual quadra política vivenciada pelo país.<br />
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Nesse ponto, convém expor o paradoxo: ao mesmo tempo em que retoma sua posição de Poder admirado e aplaudido (o juiz Moro é considerado herói), sob apupos que a sociedade encaminha na direção dos outros dois Poderes – o Legislativo e o Executivo – o Judiciário tem colecionado decisões que vão direto para o lixo. Alguém pode objetar: o país vive um ciclo de grandes tensões, com julgamentos de altos empresários, executivos e atores da política em todas as instâncias da Justiça, dificultando aos Operadores do Direito - Ministério Público e Judiciário – o controle de todos os atos litigiosos. Tem procedência esse argumento ouvido aqui e ali? Ou se trata de esforço para “aliviar a barra” dos operadores do Direito? <br />
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<b>A DEUSA TÊMIS</b><br />
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A imagem de uma mulher de olhos vendados, carregando em uma mão a balança e em outra a espada, traduz a aplicação da justiça para todos, ou seja, não deve haver distinção entre simples e poderosos. A balança significa o instrumento para “pesar” o direito de cada um e a espada é a ferramenta para defender o que é justo. O simbolismo expresso pela Deusa Têmis chama a atenção. Mas, quando se registram casos de desobediência civil – como esses que se multiplicam na onda crescente de greves de servidores públicos – a impressão é de que a deusa, além de cega, parece surda. Não tem ouvido o clamor das comunidades pelo respeito à lei e à ordem, pela aplicação das decisões tomadas pelos quadros da Justiça.<br />
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A par do descumprimento de decisões judiciais, emerge a impressão de que tem faltado aos integrantes do Poder Judiciário humildade, ou algumas virtudes que Bacon descreve em seus ensaios: “os juízes devem ser mais instruídos do que sutis, mais reverendos do que aclamados, mais circunspectos do que audaciosos. Acima de todas as coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza”. Nesse ciclo de elevado protagonismo dos juízes, vale lembrar a velha sentença de que devem se resguardar de inferências desmedidas, falando apenas nos autos, evitando as luzes fosforescente da mídia e a ânsia por visibilidade. O individualismo parece ter baixado sobre o arquipélago judicial, a ponto de se aduzir, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal compõe-se de 11 ilhas, cada qual com brilho próprio. <br />
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Outra abordagem que se faz sobre o Judiciário, principalmente sobre os membros do STF, é a de que interfere nas funções de outros poderes, seja por meio de produção de normas – extrapolando o papel de interpretar a CF e adentrando o terreno do Legislativo – seja por meio do confronto às prerrogativas do Poder Executivo. É compreensível que, em tempos de intenso litígio, envolvendo figuras centrais da política e dos negócios, haja acentuada demanda sobre o Judiciário, com sobrecarga de processos nas instâncias judiciais. Os casos sob a égide judicial, por sua vez, disparam ampla cobertura dos meios de comunicação, despertando o gosto de aparecer na mídia por parte de integrantes do aparato investigativo. No Estado-Espetáculo, os atores são atraídos pelo palco midiático. Floresce, assim, o jardim de vaidades.<br />
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Por último, lembremos esta lição de Bacon: “juiz deve preparar o caminho para uma justa sentença, como Deus costuma abrir seu caminho elevando os vales e abaixando montanhas”. Que a deusa Têmis faça bom uso da balança e da espada.<br />
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<b><i>Gaudêncio Torquato,</i></b> jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato <br />