Carnaval e a crítica da reverência

15 de fevereiro de 2018 às 08:52

Daniel Medeiros
A festa do Carnaval sempre esteve associada, desde os mais remotos tempos, a uma manifesta&ccedil;&atilde;o de&nbsp; desabafo e de esperan&ccedil;a. Associada, no hemisf&eacute;rio norte, ao fim do inverno, in&iacute;cio da primavera, tempo de semeadura, um trabalho danado, um sofrimento daqueles e ent&atilde;o tinha a festa para comemorar, lembrar juntos e torcer juntos, pedindo para a terra que seja boa e d&ecirc; frutos e que o clima seja bom e seja ameno e conforte os corpos exaustos com seu sol e suas chuvas. <br /> <br /> Praticamente todas as sociedades que conhecemos tiveram festas desse jeito. Na Idade M&eacute;dia, ao duro trabalho rural somava-se as r&iacute;gidas interdi&ccedil;&otilde;es da igreja. Vivemos o in&iacute;cio da quaresma, longo per&iacute;odo de jejuns e ora&ccedil;&otilde;es para os cat&oacute;licos praticantes. Por que ent&atilde;o n&atilde;o se preparar para essa prova&ccedil;&atilde;o cantando, dan&ccedil;ando e comendo e bebendo &agrave; valer? O pintor holand&ecirc;s Pieter Bruegel retratou, em 1559,&nbsp; uma dessas quartas feiras de cinzas, in&iacute;cio de quaresma, mostrando os foli&otilde;es em uma pousada que ficava ao lado de uma igreja. O quadro se chama O Combate entre o Carnaval e a Quaresma. A ambival&ecirc;ncia - e a folia - permanecem atual&iacute;ssimas.<br /> <br /> O Carnaval marcou, ao longo dos s&eacute;culos, um momento de quebra de regras, de limites, de identidades. Na confus&atilde;o das ruas, n&atilde;o havia rico nem pobre, homem ou mulher, religioso ou pag&atilde;o. A tradi&ccedil;&atilde;o das m&aacute;scaras, ainda t&atilde;o presentes, servia para impedir que se soubesse quem era quem nas vielas escuras das cidades europeias.<br /> <br /> O estudioso sobre cultura e linguagem Mikhail Bakht&iacute;n (1895-1975), escreveu: Os espectadores n&atilde;o assistem ao Carnaval, eles o vivem, uma vez que o Carnaval, pela sua pr&oacute;pria natureza, existe para todo o povo. Enquanto dura o Carnaval, n&atilde;o se conhece outra vida sen&atilde;o a do Carnaval. Imposs&iacute;vel escapar a ela, pois o Carnaval n&atilde;o tem nenhuma fronteira espacial. Durante a realiza&ccedil;&atilde;o da festa, s&oacute; se pode viver de acordo com suas leis, isto &eacute;, as leis da liberdade.<br /> <br /> No Brasil n&atilde;o foi diferente. A festa trazida para c&aacute; - ainda no per&iacute;odo colonial - pelos portugueses, o entrudo, enchia as ruas com gritos, dan&ccedil;as e muita alegria. Da janela, as mo&ccedil;as suspendiam por alguns dias o recato e jogavam &aacute;gua ou farinha nos passantes. Ningu&eacute;m era de ningu&eacute;m e a imagem da autoridade virava do avesso com as fantasias ir&ocirc;nicas e exageradas, os gestos ousados. A integridade n&atilde;o era garantida e os excessos eram comuns. Como observou o comerciante ingl&ecirc;s John Luccock em seu livro Notas sobre o Rio de Janeiro, publicado em 1829: &ldquo;j&aacute; se observou muitas vezes que uma comunidade se retrata t&atilde;o bem por meio de seus divertimentos como por meio de suas maneiras de pensar e agir s&eacute;rio&rdquo;. Assim era o Brasil. E como isso incomodava! Por isso, por volta de 1840, a elite carioca - a capital do Imp&eacute;rio - resolve dar um basta e pro&iacute;be o entrudo. Carnaval tinha de ser controlado, uma coisa civilizada. A pol&iacute;cia cumpriu &agrave; risca as ordens e os foli&otilde;es foram rebatizados de &ldquo;vagabundos e desordeiros&rdquo;. No lugar das festas populares, surgem os bailes, nos palacetes protegidos e, depois, nos clubes com seguran&ccedil;a na entrada. E isso dura um bom tempo. Mais pro fim do s&eacute;culo, no entanto, a criatividade brasileira resolve o problema das proibi&ccedil;&otilde;es, criando os cord&otilde;es carnavalescos, que copiavam o modelo das prociss&otilde;es religiosas. Como proibir? N&atilde;o dava. E, de novo, o carnaval voltou para as ruas.<br /> <br /> No per&iacute;odo Vargas, o populista ga&uacute;cho buscou normalizar os blocos de carnaval que cresciam a cada ano e criou os desfiles das escolas de samba, com as agremia&ccedil;&otilde;es se apresentando na avenida, cantando sambas enredo que, obrigatoriamente, precisavam tratar da Hist&oacute;ria do Brasil, de maneira elogiosa, &eacute; claro.<br /> <br /> E assim, nas &uacute;ltimas d&eacute;cadas, o carnaval tornou-se um fen&ocirc;meno tur&iacute;stico de grandes propor&ccedil;&otilde;es, particularmente no Rio de Janeiro. Mas nunca deixou de ser uma manifesta&ccedil;&atilde;o da alma popular, embora camuflado sob grossas camadas de maquiagem.<br /> <br /> At&eacute; que, no &uacute;ltimo domingo e segunda-feira, algumas escolas de samba romperam de novo com a previsibilidade e colocaram na passarela a irrever&ecirc;ncia, a cr&iacute;tica, o desabafo, invertendo os papeis, assumindo o protagonismo do discurso e gritando: Monstros! Ladr&otilde;es! Corruptos! - tudo isso ao som das baterias e o aplauso os espectadores.<br /> <br /> O antrop&oacute;logo Roberto da Matta, autor do livro Carnavais, Malandros e Her&oacute;is (1979), disse: Se o Carnaval tem algum sentido, ele est&aacute; numa est&eacute;tica da igualdade que apresenta o corpo pobre, mas harmonioso e belo; e a massa, que deveria se revoltar, envolta em fantasias e contando, na forma de um samba, hist&oacute;rias imposs&iacute;veis. O Carnaval &eacute; riso, engano e mentira.<br /> <br /> E tamb&eacute;m verdades. Muitas verdades.<br /> <br /> <b><i><img src="/uploads/image/artigos_daniel-medeiros_doutor-em-educacao-historica-ufpr_sb.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> <br /> Daniel Medeiros</i></b> &eacute; doutor em Educa&ccedil;&atilde;o Hist&oacute;rica pela UFPR. Atualmente, &eacute; professor de Hist&oacute;ria do Brasil no Curso Positivo, de Curitiba.