Condução coercitiva e os aspectos jurídicos

18 de junho de 2018 às 14:29

Leonardo Pantaleão
Em que pese tratar-se de tem&aacute;tica absorta pela legisla&ccedil;&atilde;o processual penal desde a d&eacute;cada de 40 (especificamente 1942, quando da entrada em vigor do C&oacute;digo de Processo Penal), o assunto destacou-se recentemente, por transparecer pr&aacute;tica recorrente no &acirc;mbito de grandes opera&ccedil;&otilde;es policiais.<br /> <br /> Desde ent&atilde;o, a sua legalidade sob o prisma constitucional e infra fora alvo de in&uacute;meros debates no mundo jur&iacute;dico, de tal forma que o Supremo Tribunal Federal foi destinat&aacute;rio de a&ccedil;&otilde;es judiciais protocolizadas perante aquele Pret&oacute;rio Excelso, no sentido de que se firmasse entendimento sobre tema de absoluta relev&acirc;ncia, qual seja, a exist&ecirc;ncia ou n&atilde;o de sustent&aacute;culo jur&iacute;dico para justificar a condu&ccedil;&atilde;o coercitiva de pessoas investigadas para atos de interrogat&oacute;rio.<br /> <br /> A par de qualquer desfecho, imperiosa se faz uma an&aacute;lise acurada das cercanias que norteiam referido tema, na realidade jur&iacute;dica vigente, raz&atilde;o pela qual pretende-se, de forma objetiva, apresentar ao leitor uma vis&atilde;o panor&acirc;mica dos dispositivos legais aplic&aacute;veis, em conson&acirc;ncia com as regras constitucionais advindas da Carta Pol&iacute;tica de 1988.<br /> <br /> Vestibularmente, trata-se de previs&atilde;o legal contida no bojo do art. 260 do C&oacute;digo de Processo Penal (1). Verifica-se, assim, que o texto do dispositivo &eacute; expl&iacute;cito no sentido de possibilitar a condi&ccedil;&atilde;o coercitiva, entre outras hip&oacute;teses, tamb&eacute;m para fins de interrogat&oacute;rio, o que, prima facie, poderia fazer desaparecer qualquer interesse jur&iacute;dico sobre a quest&atilde;o.<br /> <br /> Por&eacute;m, como j&aacute; ressaltado, n&atilde;o se pode descurar que referida norma de natureza infraconstitucional data de per&iacute;odo que antecedeu a Constitui&ccedil;&atilde;o da Rep&uacute;blica, raz&atilde;o pela qual a an&aacute;lise acerca de sua eventual recep&ccedil;&atilde;o se faz mister.<br /> <br /> Sabe-se que atrav&eacute;s do mandado respectivo, o investigado (ou acusado) tem sua liberdade de locomo&ccedil;&atilde;o cerceada pelo transcurso de tempo suficiente para ser conduzido at&eacute; a Pol&iacute;cia Judici&aacute;ria ou Minist&eacute;rio P&uacute;blico, para participar de ato de investiga&ccedil;&atilde;o preliminar em que se considere sua presen&ccedil;a fundamental. Entende a doutrina, sob esse prisma, que tal restri&ccedil;&atilde;o a liberdade ambulatorial n&atilde;o poderia ultrapassar o limite de 24 (vinte e quatro) horas.<br /> <br /> Destaque-se, por relevante, que a condu&ccedil;&atilde;o coercitiva n&atilde;o se confunde, sob nenhum aspecto, com pris&atilde;o de natureza cautelar (seja tempor&aacute;ria ou preventiva). Ali&aacute;s, acerca do enfoque das medidas cautelares de natureza processual penal, tem-se que os arts. 319 e 320, ambos da Lei Penal Adjetiva, n&atilde;o a contemplam em seu rol. Por&eacute;m, inevit&aacute;vel concluir, at&eacute; mesmo pelo seu efeito imediato, que corresponde, inexoravelmente, a uma medida cautelar de natureza pessoal.<br /> <br /> A partir da&iacute;, por haver restri&ccedil;&atilde;o (mesmo que por curto per&iacute;odo) a liberdade de locomo&ccedil;&atilde;o, conclui-se que somente a autoridade judici&aacute;ria &eacute; que tem atribui&ccedil;&atilde;o para a expedi&ccedil;&atilde;o de mandados correlatos, ex vi do disposto no art. 5&ordm;, LXI, da Constitui&ccedil;&atilde;o Federal (2) e no art. 282, &sect;2&ordm;, da lei processual penal (3). Trata-se, assim, de cl&aacute;usula de reserva de jurisdi&ccedil;&atilde;o. A Suprema Corte, em sentido diverso, tem precedente isolado, entendendo, sob a &oacute;tica do art. 4&ordm; do C&oacute;digo de Processo Penal, que a pol&iacute;cia judici&aacute;ria tem legitimidade para, sob o comando da autoridade policial, adotar todas as medidas necess&aacute;rias &agrave; elucida&ccedil;&atilde;o de um delito, incluindo-se a&iacute; a condu&ccedil;&atilde;o de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos (4).<br /> <br /> Por outro lado, superada a quest&atilde;o atinente a autoridade competente para a expedi&ccedil;&atilde;o do mandado correspondente, com a devida venia a posicionamentos diversos, for&ccedil;oso concluir que a melhor exegese do art. 260 do CPP &agrave; luz da Constitui&ccedil;&atilde;o da Rep&uacute;blica &eacute; no sentido de que a possibilidade de condu&ccedil;&atilde;o para fins de interrogat&oacute;rio colide com garantias individuais, entre as quais, aquela decorrente do direito ao sil&ecirc;ncio do investigado (art. 5&ordm;, LXIII, CF), que tem como consect&aacute;rio l&oacute;gico o direito de n&atilde;o produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).<br /> <br /> Isso n&atilde;o significa, entretanto, que o investigado (ou acusado) n&atilde;o possa ser destinat&aacute;rio de mandado desse jaez, desde que em circunst&acirc;ncias que n&atilde;o o obriguem a produzir provas contra si pr&oacute;prio, como, por exemplo, participar de reconhecimento pessoal (&eacute; um ato que n&atilde;o demanda comportamento ativo por parte do investigado e, portanto, n&atilde;o infringe a principiologia referida), identifica&ccedil;&atilde;o criminal, entre outros.<br /> <br /> Outra situa&ccedil;&atilde;o relativa ao tema, e capaz de gerar controv&eacute;rsia, refere-se &agrave; possibilidade de a autoridade judici&aacute;ria expedir mandados de condu&ccedil;&atilde;o coercitiva paralelamente a outros de busca e apreens&atilde;o (usual em grandes opera&ccedil;&otilde;es), com o intuito de evitar que o investigado atue de maneira a destruir provas ou, at&eacute; mesmo, sonegar fontes delas. A an&aacute;lise sob o manto constitucional, adotando-se o mesmo crit&eacute;rio acima indicado, conduz a uma conclus&atilde;o acerca de sua possibilidade, pois, assim como nas situa&ccedil;&otilde;es exemplificativamente mencionadas, n&atilde;o se imp&otilde;e qualquer comportamento ativo de sua parte, capaz de lhe causar reflexos desfavor&aacute;veis no &acirc;mbito da seara penal, o que legitima tal pr&aacute;tica.<br /> <br /> Parece-nos, por fim, que a releitura do art. 260 do C&oacute;digo de Processo Penal, sob o espectro constitucional, evidencia que, mesmo em caso de desatendimento do investigado a chamamento para ato de interrogat&oacute;rio, sua condu&ccedil;&atilde;o coercitiva caracteriza abuso estatal, haja vista que n&atilde;o se encontra razoabilidade em conduzi-lo for&ccedil;osamente a ato que, caso assim pretenda, possa permanecer em sil&ecirc;ncio por for&ccedil;a da Carta Pol&iacute;tica. A insist&ecirc;ncia na ado&ccedil;&atilde;o de procedimento desta natureza deve, indubitavelmente, ser severamente punida, pois, na maioria das vezes, est&aacute; permeada por interesses outros, dentre os quais, o esc&aacute;rnio p&uacute;blico, o que n&atilde;o pode contar com o benepl&aacute;cito das autoridades.<br /> <br /> (1) Art. 260. Se o acusado n&atilde;o atender &agrave; intima&ccedil;&atilde;o para o interrogat&oacute;rio, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, n&atilde;o possa ser realizado, a autoridade poder&aacute; mandar conduzi-lo &agrave; sua presen&ccedil;a. Par&aacute;grafo &uacute;nico. O mandado conter&aacute;, al&eacute;m da ordem de condu&ccedil;&atilde;o, os requisitos mencionados no art. 352, no que Ihe for aplic&aacute;vel.<br /> <br /> (2) Art. 5&ordm; Todos s&atilde;o iguais perante a lei, sem distin&ccedil;&atilde;o de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pa&iacute;s a inviolabilidade do direito &agrave; vida, &agrave; liberdade, &agrave; igualdade, &agrave; seguran&ccedil;a e &agrave; propriedade, nos termos seguintes: (&hellip;)<br /> <br /> LXI &ndash; ningu&eacute;m ser&aacute; preso sen&atilde;o em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judici&aacute;ria competente, salvo nos casos de transgress&atilde;o militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;<br /> <br /> (3) Art. 282. As medidas cautelares previstas neste T&iacute;tulo dever&atilde;o ser aplicadas observando-se a: (&hellip;)<br /> &sect; 2o As medidas cautelares ser&atilde;o decretadas pelo juiz, de of&iacute;cio ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investiga&ccedil;&atilde;o criminal, por representa&ccedil;&atilde;o da autoridade policial ou mediante requerimento do Minist&eacute;rio P&uacute;blico.<br /> <br /> (4) HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CONDU&Ccedil;&Atilde;O DO INVESTIGADO &Agrave; AUTORIDADE POLICIAL PARA ESCLARECIMENTOS. POSSIBILIDADE. INTELIG&Ecirc;NCIA DO ART. 144, &sect; 4&ordm;, DA CONSTITUI&Ccedil;&Atilde;O FEDERAL E DO ART. 6&ordm; DO CPP. DESNECESSIDADE DE MANDADO DE PRIS&Atilde;O OU DE ESTADO DE FLAGR&Acirc;NCIA. DESNECESSIDADE DE INVOCA&Ccedil;&Atilde;O DA TEORIA OU DOUTRINA DOS PODERES IMPL&Iacute;CITOS. PRIS&Atilde;O CAUTELAR DECRETADA POR DECIS&Atilde;O JUDICIAL, AP&Oacute;S A CONFISS&Atilde;O INFORMAL E O INTERROGAT&Oacute;RIO DO INDICIADO. LEGITIMIDADE. OBSERV&Acirc;NCIA DA CL&Aacute;USULA CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE JURISDI&Ccedil;&Atilde;O. USO DE ALGEMAS DEVIDAMENTE JUSTIFICADO. CONDENA&Ccedil;&Atilde;O BASEADA EM PROVAS ID&Ocirc;NEAS E SUFICIENTES. NULIDADE PROCESSUAIS N&Atilde;O VERIFICADAS. LEGITIMIDADE DOS FUNDAMENTOS DA PRIS&Atilde;O PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM P&Uacute;BLICA E CONVENI&Ecirc;NCIA DA INSTRU&Ccedil;&Atilde;O CRIMINAL. ORDEM DENEGADA. I. A pr&oacute;pria Constitui&ccedil;&atilde;o Federal assegura, em seu art. 144, &sect; 4&ordm;, &agrave;s pol&iacute;cias civis, dirigidas por delegados de pol&iacute;cia de carreira, as fun&ccedil;&otilde;es de pol&iacute;cia judici&aacute;ria e a apura&ccedil;&atilde;o de infra&ccedil;&otilde;es penais. II. O art. 6&ordm; do C&oacute;digo de Processo Penal, por sua vez, estabelece as provid&ecirc;ncias que devem ser tomadas pela autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorr&ecirc;ncia de um delito, todas dispostas nos incisos II a VI. III. Legitimidade dos agentes policiais, sob o comando da autoridade policial competente (art. 4&ordm; do CPP), para tomar todas as provid&ecirc;ncias necess&aacute;rias &agrave; elucida&ccedil;&atilde;o de um delito, incluindo-se a&iacute; a condu&ccedil;&atilde;o de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos. (&hellip;) &ndash; HC 107644/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 6.9.2011<br /> <br /> <b><i><img src="/uploads/image/artigos_leonardo-pantaleao_advogado-criminalista.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Leonardo Pantale&atilde;o</i></b> &eacute; advogado criminalista, professor do Centro Preparat&oacute;rio Jur&iacute;dico (CPJUR), palestrante de Direito Penal e Direito Processual Penal e s&oacute;cio-fundador da Pantale&atilde;o Sociedade de Advogados.