Os sons da alma e a sociedade ouvinte

26 de setembro de 2018 às 18:07

José de Paiva Netto
&Eacute; digna de respeito e louvor a biografia da c&eacute;lebre ativista social, escritora e conferencista norte-americana Helen Keller (1880-1968). Embora se saiba que, aos dezoito meses de vida, estava cega e surda, tornou-se, com o imprescind&iacute;vel apoio de sua amiga e professora Anne Sullivan Macy (1866-1936), um dos mais importantes &iacute;cones da luta pela qualidade de vida dos que t&ecirc;m defici&ecirc;ncia. Um de seus pensamentos que mais admiro adverte: &ldquo;At&eacute; que a grande massa de pessoas seja preenchida com o senso de responsabilidade para o bem-estar de todos, a justi&ccedil;a social jamais ser&aacute; alcan&ccedil;ada&rdquo;.<br /> <br /> <b>Coragem e Perseveran&ccedil;a</b><br /> <br /> Apesar do encantamento que hist&oacute;rias como essa despertam, enganam-se os que acreditam que se trata de acontecimentos espor&aacute;dicos da coragem e perseveran&ccedil;a humanas. Na verdade, exemplos semelhantes ao de Helen est&atilde;o por todo lugar, habitando, com frequ&ecirc;ncia, o cotidiano. No que se refere &agrave; perda da audi&ccedil;&atilde;o, temos, atualmente no Brasil, quase 10 milh&otilde;es de pessoas nesse estado.<br /> <br /> Numa entrevista conduzida por Daniel Guimar&atilde;es, no programa Sociedade Solid&aacute;ria, da Boa Vontade TV (Oi TV &mdash; Canal 212 &mdash; e Net Brasil/Claro TV &mdash; Canais 196 e 696), os atores Sueli Ramalho e Rimar Segala, irm&atilde;os surdos de nascen&ccedil;a, narraram belas experi&ecirc;ncias da trajet&oacute;ria de vida de ambos.<br /> <br /> Ao ser indagada sobre de que modo encarava a aus&ecirc;ncia de som na inf&acirc;ncia, Sueli comentou: &ldquo;Sou filha de pais, av&oacute;s paternos e bisav&oacute;s surdos. Para mim, era normal. Minha l&iacute;ngua materna sempre foi a de sinais. Eu achava que o mundo l&aacute; fora era deficiente. A gente morria de d&oacute; das crian&ccedil;as na rua, pois achava que mexiam a boca porque estavam com fome, porque n&atilde;o tinham chiclete ou bala na boca. Que mundo diferente &eacute; esse que n&atilde;o tinha chiclete? [risos] Queria ensinar todas essas pessoas a falar com as m&atilde;os. Era essa a minha preocupa&ccedil;&atilde;o&rdquo;.<br /> <br /> Por sua vez, Rimar Segala, por gestos traduzidos pela irm&atilde;, comentou: &ldquo;A trajet&oacute;ria da Sueli foi diferente da minha. Embora sejamos surdos, a forma de comunica&ccedil;&atilde;o &eacute; totalmente diferente. Sueli aprendeu [com ajuda de aparelho] a falar. Eu ainda n&atilde;o desenvolvi a fala. Quero muito falar com a sociedade ouvinte (termo que utilizamos para a pessoa que normalmente escuta)&rdquo;. Sueli complementou: &ldquo;Foi muito dif&iacute;cil aprender a l&iacute;ngua portuguesa. Levei muitos anos para aprender a me comunicar com a sociedade ouvinte, porque o nosso recurso &eacute; totalmente visual. Ainda &lsquo;apanho&rsquo; da l&iacute;ngua portuguesa!&rdquo; [risos]<br /> <br /> <b>Companhia Arte e Sil&ecirc;ncio</b><br /> <br /> Fundadores da Companhia Arte e Sil&ecirc;ncio, eles perceberam, desde muito cedo, pela influ&ecirc;ncia do pai, que a educa&ccedil;&atilde;o e a arte poderiam ser instrumentos valios&iacute;ssimos no aux&iacute;lio ao deficiente auditivo. Rimar explicou: &ldquo;Em minha casa tinha muita cultura. Meu pai ficava contando hist&oacute;rias da B&iacute;blia, de Mois&eacute;s, e quando fui para a escola especial de surdos, percebi a falta de sensibilidade com a parte did&aacute;tica, da hist&oacute;ria da educa&ccedil;&atilde;o do surdo. Consegui com a minha fam&iacute;lia tudo o que aprendi. Ent&atilde;o me sobressa&iacute;a nessa escola. Quando me graduei em Matem&aacute;tica, acabei criando uma hist&oacute;ria, uma adapta&ccedil;&atilde;o atrav&eacute;s dela. Comecei a ser um criador de hist&oacute;rias. Isso acabou me direcionando para o teatro&rdquo;.<br /> <br /> Ainda sobre o papel da educa&ccedil;&atilde;o, Sueli afirmou que &ldquo;a maior dificuldade que as crian&ccedil;as surdas t&ecirc;m &eacute; da comunica&ccedil;&atilde;o na pr&oacute;pria fam&iacute;lia. &Eacute; nela a primeira educa&ccedil;&atilde;o. Muitos pais querem aprender a se comunicar com seus filhos, mas n&atilde;o sabem como. Alguns deles &lsquo;jogam&rsquo; as crian&ccedil;as na escola achando que o professor tem que fazer um milagre, como se a surdez fosse uma doen&ccedil;a, por n&atilde;o possu&iacute;rem a correta informa&ccedil;&atilde;o. Da&iacute; termos montado a pe&ccedil;a &lsquo;A Orelha&rsquo;&rdquo;.<br /> <br /> C&ocirc;nscios do valor da arte no processo de incluir socialmente os que n&atilde;o possuem a audi&ccedil;&atilde;o, em especial crian&ccedil;as, Sueli e Rimar montaram a pe&ccedil;a &ldquo;A Orelha&rdquo;. Comenta Sueli: &ldquo;Come&ccedil;amos a dar aulas de Libras [L&iacute;ngua Brasileira de Sinais] aos pais das crian&ccedil;as e, ao mesmo tempo, a ensin&aacute;-los a apresentar uma pe&ccedil;a de teatro para os filhos. A pe&ccedil;a mostra, atrav&eacute;s do humor, a realidade da cultura surda e como voc&ecirc; pode abordar um surdo. A l&iacute;ngua de sinais me ajudou a falar. N&atilde;o pro&iacute;bam o uso das m&atilde;os. &Eacute; o nosso recurso, nossa vis&atilde;o&rdquo;.<br /> <br /> <b>LIBRAS</b><br /> <br /> Em 24 de abril de 2002, tivemos a promulga&ccedil;&atilde;o da Lei 10.436, que oficializou a L&iacute;ngua Brasileira de Sinais (Libras). Entretanto, equivocam-se os que a consideram uma tradu&ccedil;&atilde;o [por gestos] da l&iacute;ngua portuguesa. Ela tem estrutura e gram&aacute;tica pr&oacute;prias. Rimar Segala explica: &ldquo;O portugu&ecirc;s &eacute; uma l&iacute;ngua oral, a Libras &eacute; visual [gestos, express&atilde;o corporal e facial] (...)&rdquo;.<br /> <br /> O que poucos sabem &eacute; que os surdos tamb&eacute;m t&ecirc;m sotaques diversos: &ldquo;Citemos, como exemplo, o gesto para significar &lsquo;Mam&atilde;e&rsquo;. Existe uma s&eacute;rie de sinais lingu&iacute;sticos para essa palavra&rdquo;. E para demonstrar a riqueza da Libras, apresentou diferentes formas de dizer &ldquo;boa tarde&rdquo; nos Estados do pa&iacute;s.<br /> <br /> <b>Realidade Brasileira</b><br /> <br /> Analisando a realidade de muitas fam&iacute;lias, Rimar assinala: &ldquo;Todas as mulheres quando engravidam sonham ter um filho saud&aacute;vel, lindo. Quando nasce com problema de surdez, elas levam um susto pela diferen&ccedil;a e, ent&atilde;o, bate o desespero. Sem preparo, tratam a crian&ccedil;a surda no modelo da ouvinte. N&atilde;o percebem que esse diferencial &eacute; simplesmente outra cultura. Esse programa est&aacute; sendo muito importante, ao passar informa&ccedil;&otilde;es para todas as m&atilde;es que est&atilde;o nos assistindo. Se voc&ecirc;s tiverem um filho surdo, por favor, procurem aprender a l&iacute;ngua de sinais, entender todas as culturas. Respeitar essa grande diferen&ccedil;a &eacute; um extraordin&aacute;rio investimento para o futuro do surdo, para unir a fam&iacute;lia&rdquo;.<br /> <br /> Outro ponto de relev&acirc;ncia &eacute; a inser&ccedil;&atilde;o no mercado de trabalho. &ldquo;Ser&aacute; que surdo pode trabalhar? Qual cargo certo? Posso deixar o telefone na mesa? O desconhecimento &eacute; muito grande. A pe&ccedil;a &lsquo;Palha&ccedil;os no RH&rsquo;, que criamos, mostra qual &eacute; o par&acirc;metro que podemos utilizar numa empresa que tem uma pessoa com defici&ecirc;ncia auditiva&rdquo;, acrescenta Rimar.<br /> <br /> Os dois irm&atilde;os atores trazem, ainda, dicas de bom conv&iacute;vio: &ldquo;O surdo &eacute; visual. N&atilde;o adianta nem gritar, caso n&atilde;o esteja na vis&atilde;o dele. Se houver um interruptor por perto, acender e apagar as luzes faz parte da cultura surda&rdquo;, explica Sueli. &ldquo;Ou ent&atilde;o chegue perto do surdo e chame-o. Tamb&eacute;m &eacute; importante que todos os funcion&aacute;rios possam conhecer pelo menos o b&aacute;sico da Libras. &lsquo;Oi, tudo bem?&rsquo; &eacute; um cumprimento que nos faz sentir inseridos na sociedade&rdquo;, completa Rimar.<br /> <br /> Por fim, o ator Rimar Segala revelou coincid&ecirc;ncia envolvendo a estampa de Jesus, o Cristo Ecum&ecirc;nico, o Divino Estadista, bastante difundida pela LBV. &ldquo;Desde pequeno sempre via na televis&atilde;o um s&iacute;mbolo muito importante, a imagem de Jesus Cristo. Hoje vi a mesma imagem aqui. Quero agradecer &agrave; LBV, porque &eacute; fundamental para todo o Brasil pensar em inclus&atilde;o. Estou muito agradecido. Parab&eacute;ns!&rdquo;<br /> <br /> Grato a voc&ecirc;s por compartilhar tanta perseveran&ccedil;a e coragem. Uma experi&ecirc;ncia de vida que inspirar&aacute; muita gente.<br /> <br /> Ali&aacute;s, o assunto vem despertando interesse entre os leitores, a exemplo de Haroldo Rocha (Bras&iacute;lia, Distrito Federal), M&aacute;rio Augusto Brand&atilde;o (Gravata&iacute;/RS), Marcos Ant&ocirc;nio Franchi e Regina Santos (S&atilde;o Paulo/SP). <br /> <br /> Minha sauda&ccedil;&atilde;o a todos.<br /> <br /> <b><i><img src="http://www.novoeste.com/uploads/image/artigos_paiva-neto_lbv.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> <br /> Jos&eacute; de Paiva Netto</i></b>, jornalista, radialista e escritor.<br /> paivanetto@lbv.org.br &mdash; www.boavontade.com