O apartheid nosso de cada dia

17 de outubro de 2018 às 16:41

Monica Lupatin Cavenaghi
<b>&quot;O que acha de um negro ser obrigado a entrar pela porta da cozinha de um restaurante, em fun&ccedil;&atilde;o de sua ra&ccedil;a?&quot;</b><br /> <br /> Foi com essa impactante pergunta que o advogado Caio Leonardo Bessa Rodrigues, cadeirante, me fez refletir sobre o qu&atilde;o inaceit&aacute;vel &eacute; a entrada pela porta dos fundos, pela rampa lateral, pelo lift que precisa esperar pelo operador para funcionar. Sobre o qu&atilde;o descabido &eacute; ocupar o lugar de m&aacute; visibilidade no cinema, e tantos outros &quot;<b>puxadinhos</b>&quot; que fazem com que a pessoa com defici&ecirc;ncia quase sempre sinta-se &quot;<b>um peso</b>&quot; nos espa&ccedil;os nos quais consegue entrar. O recado subliminar &eacute; mais ou menos o seguinte: &quot;<b><i>n&atilde;o pensamos em ter voc&ecirc; por aqui, mas providenciamos um jeito de voc&ecirc; estar. Contente-se</i></b>.&quot;<br /> <br /> E n&atilde;o se trata de um caso isolado. Em um artigo publicado no site da revista &Eacute;poca no in&iacute;cio da agosto, o professor Conrado H&uuml;bner Mendes falou das dificuldades que seu irm&atilde;o, Rodrigo Mendes, enfrentou para participar da Flip (Feira Liter&aacute;ria Internacional de Paraty). Tetrapl&eacute;gico, Rodrigo foi impedido, no primeiro dia do evento, de entrar de carro no centro hist&oacute;rico da cidade. S&oacute; conseguiu o feito nos dias seguintes, com a ajuda da Guarda Municipal, e mesmo assim foi hostilizado pelos pedestres.<br /> <br /> No texto, que pode ser lido na &iacute;ntegra <a href="https://nsa.im-imcgrupo.com/link.php?code=bDpodHRwJTNBJTJGJTJGZXBvY2EuZ2xvYm8uY29tJTJGY29ucmFkby1odWJuZXItbWVuZGVzJTJGZmxpcC1wcm9pYmlkYS1wYXJhLWNhZGVpcmFudGVzLTIyOTQyMjAxJTNGdXRtX3NvdXJjZSUzRGZhY2Vib29rJTI2dXRtX21lZGl1bSUzRHNvY2lhbCUyNnV0bV9jYW1wYWlnbiUzRHBvc3Q6MjQxODA1ODg2Mjpqb3JuYWxAbm92b2VzdGUuY29tOmY5NWY2OQ==" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i>aqui</i></u></span></a>, Conrado lembra que, dois anos antes, o jornalista Jairo Marques, cadeirante, tamb&eacute;m enfrentou problemas para participar do evento. Apesar de se mostrar solid&aacute;ria sempre que uma hist&oacute;ria dessas &eacute; contada, a sociedade em geral, e os poderes p&uacute;blicos em particular, n&atilde;o demonstram muita disposi&ccedil;&atilde;o em mudar. E n&atilde;o se trata de discutir o que pode ser feito, mas de se aplicar o conceito do Desenho Universal, discutido h&aacute; d&eacute;cadas mas muito pouco utilizado por aqui.<br /> <br /> Na pr&aacute;tica, Desenho Universal abrange o processo de criar os produtos que s&atilde;o acess&iacute;veis para todas as pessoas, independentemente de suas caracter&iacute;sticas pessoais, idade ou habilidades. O conceito foi desenvolvido com o objetivo de garantir que qualquer ambiente ou produto poder&aacute; ser alcan&ccedil;ado, manipulado e usado, independentemente do tamanho do corpo do indiv&iacute;duo, sua postura ou sua mobilidade.<br /> <br /> &Eacute; sempre bom lembrar que n&atilde;o estamos falando de algo direcionado apenas aos que precisam, mas para TODAS as pessoas. A ideia do Desenho Universal &eacute; justamente evitar a necessidade de se criar ambientes e produtos especiais para pessoas com defici&ecirc;ncias, assegurando que todos possam utilizar com seguran&ccedil;a e autonomia os diversos espa&ccedil;os constru&iacute;dos e objetos. Para isso, ele deve ser:<br /> <br /> <div style="margin-left: 40px;"><b><i>&bull; Igualit&aacute;rio </i></b><i>&ndash; pode ser utilizado por pessoas com diferentes capacidades;<br /> <b>&bull; Adapt&aacute;vel</b> &ndash; atende pessoas com diferentes habilidades e prefer&ecirc;ncias, sendo adapt&aacute;vel para qualquer uso;<br /> <b>&bull; &Oacute;bvio</b> &ndash; deve ser de f&aacute;cil entendimento para qualquer pessoa, independentemente de sua experi&ecirc;ncia, habilidade de linguagem ou n&iacute;vel de concentra&ccedil;&atilde;o;<br /> <b>&bull; Conhecido</b> &ndash; com as informa&ccedil;&otilde;es transmitidas de acordo com as necessidades de todos (figura, letras, braile e sinaliza&ccedil;&atilde;o auditiva);<br /> <b>&bull; Seguro</b> &ndash; deve minimizar riscos e poss&iacute;veis consequ&ecirc;ncias de a&ccedil;&otilde;es acidentais ou n&atilde;o intencionais;<br /> <b>&bull; Sem esfor&ccedil;o</b> &ndash; para ser utilizado eficientemente, sem esfor&ccedil;o e com o m&iacute;nimo de fadiga;<br /> <b>&bull; Abrangente</b> &ndash; estabelece dimens&otilde;es e apropriados para o acesso, o alcance, a manipula&ccedil;&atilde;o e o uso, independentemente do tamanho do corpo (obesos, an&otilde;es etc.), da postura ou mobilidade do usu&aacute;rio (pessoas em cadeira de rodas, com carrinhos de beb&ecirc;, bengalas etc.).</i></div> <br /> Mais que um conceito, o Desenho Universal &eacute; lei federal desde dezembro de 2004, quando foi publicado o Decreto Federal 5.296, que o define como:<br /> <br /> &quot;<b><i>concep&ccedil;&atilde;o de espa&ccedil;os, artefatos e produtos que visam atender simultaneamente todas as pessoas, com diferentes caracter&iacute;sticas antropom&eacute;tricas e sensoriais, de forma aut&ocirc;noma, segura e confort&aacute;vel, constituindo-se nos elementos ou solu&ccedil;&otilde;es que comp&otilde;em a acessibilidade. Quanto &agrave; implementa&ccedil;&atilde;o desta defini&ccedil;&atilde;o, o artigo 10&ordm; determina que: a concep&ccedil;&atilde;o e a implanta&ccedil;&atilde;o dos projetos arquitet&ocirc;nicos e urban&iacute;sticos devem atender aos princ&iacute;pios do desenho universal, tendo como refer&ecirc;ncias b&aacute;sicas as normas t&eacute;cnicas de acessibilidade da ABNT, a legisla&ccedil;&atilde;o espec&iacute;fica e as regras contidas no Decreto(...)</i></b>&quot;.<br /> <br /> Este mesmo decreto, que regulamentou as leis de acessibilidade (10.098) e de atendimento priorit&aacute;rio (10.048), forneceu elementos t&eacute;cnicos e estipulou prazos para que vias p&uacute;blicas, estacionamentos, edif&iacute;cios p&uacute;blicos e privados viessem atender o Desenho Universal. O decreto prev&ecirc; que as legisla&ccedil;&otilde;es estaduais e municipais, tais como planos diretores de obras e c&oacute;digos de obras e posturas estaduais e municipais devem ser adaptados para atender &agrave;s especifica&ccedil;&otilde;es.<br /> <br /> At&eacute; aqui, elas s&atilde;o obrigat&oacute;rias, pelo menos no estado e na cidade de S&atilde;o Paulo, apenas para habita&ccedil;&otilde;es de interesse social. Por que esta regra ainda n&atilde;o &eacute; mais abrangente? A pergunta &eacute; simples, mas causa profunda reflex&atilde;o na medida em que escancara um velado &quot;<b>apartheid</b>&quot; cotidiano, agora contra as pessoas com defici&ecirc;ncia. Se, por um lado, este triste e recente epis&oacute;dio da hist&oacute;ria da humanidade nos causa rep&uacute;dio e temos a sensa&ccedil;&atilde;o de que jamais o aceitar&iacute;amos de novo, por outro, em rela&ccedil;&atilde;o &agrave;s pessoas com defici&ecirc;ncia, nos causa passividade e, o que &eacute; pior, por vezes at&eacute; gratid&atilde;o: &quot;<b><i>puxa, que bom, tem um jeito do cadeirante entrar aqui</i></b>&quot;.<br /> <br /> Assim, n&atilde;o h&aacute; como n&atilde;o enxergar o conceito do Desenho Universal como &uacute;nica alternativa vi&aacute;vel para a arquitetura do Universo. Que entrem todos pela mesma porta. Que caminhem todos pela mesma cal&ccedil;ada. Que acessem, todos juntos, os mesmos lugares. Justo para com as pessoas com defici&ecirc;ncia? N&atilde;o. Justo para com o desenvolvimento da humanidade. E que n&atilde;o precisemos de um novo Nelson Mandela pra compreender isto. Fa&ccedil;amos acontecer!<br /> <br /> <b><i>Monica Lupatin Cavenaghi</i></b> &eacute; administradora de empresas e empres&aacute;ria, diretora comercial da Cavenaghi e Vice-presidente da ABRIDEF, Associa&ccedil;&atilde;o Brasileira da Ind&uacute;stria, Com&eacute;rcio e Servi&ccedil;o de Tecnologia Assistiva.