"Traidor da constituição é traidor da pátria!"

26 de outubro de 2018 às 17:43

Carlos Luiz Strapazzon
&ldquo;Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constitui&ccedil;&atilde;o, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o ex&iacute;lio e o cemit&eacute;rio. Temos &oacute;dio &agrave; ditadura. &Oacute;dio e nojo. Amaldi&ccedil;oamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e na&ccedil;&otilde;es. (&hellip;). A corrup&ccedil;&atilde;o &eacute; o cupim da Rep&uacute;blica. Rep&uacute;blica suja pela corrup&ccedil;&atilde;o impune tomba nas m&atilde;os de demagogos que, a pretexto de salv&aacute;-la, a tiranizam. N&atilde;o roubar, n&atilde;o deixar roubar, p&ocirc;r na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral p&uacute;blica.&rdquo; <br /> <br /> O t&iacute;tulo e essas palavras iniciais s&atilde;o de Ulisses Guimar&atilde;es, o presidente dos trabalhos do Congresso Constituinte eleito para escrever a Constitui&ccedil;&atilde;o. Foram pronunciadas no dia da promulga&ccedil;&atilde;o, em 05 de outubro de 1988, &agrave;s 15h50, na sede da C&acirc;mara dos Deputados. E n&atilde;o devem ser esquecidas. Explicitam, como poucas, que regimes tiranos desgra&ccedil;am as na&ccedil;&otilde;es. E que a corrup&ccedil;&atilde;o impune &eacute; o caminho para a tirania. Essas duas coisas est&atilde;o interligadas. O autoritarismo corrompe os la&ccedil;os da vida social; o roubo corrompe o patrim&ocirc;nio de todos. Ulisses viu na tirania e na corrup&ccedil;&atilde;o os dois males mais amea&ccedil;adores da vida social. E estava certo.<br /> <br /> Em 2018, a Constitui&ccedil;&atilde;o da It&aacute;lia completa 70 anos. A Constitui&ccedil;&atilde;o da Espanha completa 40 anos. E a do Brasil faz 30 anos. Nos tr&ecirc;s casos, a corrup&ccedil;&atilde;o e a tirania s&atilde;o problemas conhecidos. S&atilde;o a causa de crises pol&iacute;ticas agudas. No entanto, n&atilde;o s&oacute; nesses tr&ecirc;s pa&iacute;ses, mas em muitos outros, as Constitui&ccedil;&otilde;es t&ecirc;m sido decisivas para lidar com crises pol&iacute;ticas. Na realidade, as sociedades que protegem a democracia e suas constitui&ccedil;&otilde;es t&ecirc;m enorme vantagem para lidar e superar crises agudas. N&atilde;o &eacute; &agrave; toa que n&atilde;o h&aacute; caso algum de sociedade bem desenvolvida que n&atilde;o seja uma democracia constitucional. Em contraste, dentre as sociedades que entraram em colapso ou que s&atilde;o pobres e atrasadas, a esmagadora maioria n&atilde;o t&ecirc;m pr&aacute;ticas democr&aacute;ticas. N&atilde;o tem estabilidade e seguran&ccedil;a jur&iacute;dica e, portanto, n&atilde;o tem Constitui&ccedil;&atilde;o. Os relat&oacute;rios globais sobre o Desenvolvimento Humano (IDH) n&atilde;o deixam d&uacute;vidas sobre isso.<br /> <br /> A Constitui&ccedil;&atilde;o &eacute; diferente das leis. &Eacute; um erro grave e inaceit&aacute;vel confundi-las. &Eacute; que leis podem ser modificadas e at&eacute; anuladas sem muita discuss&atilde;o e cerim&ocirc;nia jur&iacute;dica. C&acirc;maras de Vereadores, Assembleias Legislativas e Congresso Nacional decidem quais leis devem ser criadas e quais devem ser eliminadas. H&aacute; bastante liberdade para isso. Mas o que os autoriza a legislar &eacute; a Constitui&ccedil;&atilde;o. Ela &eacute; o limite das leis e dos governos. N&atilde;o &eacute; o inverso. N&atilde;o s&atilde;o deputados e senadores, nem muito menos presidentes que decidem o que vai permanecer e o que deve sair da Constitui&ccedil;&atilde;o. A Constitui&ccedil;&atilde;o &eacute; um contrato pol&iacute;tico acima de todos, feito por todos e para todos. Um acordo b&aacute;sico sobre as coisas mais importantes e que devem ser est&aacute;veis. Mas &eacute; um contrato especial porque n&atilde;o tem fiador ou avalista externo. As regras gerais da conviv&ecirc;ncia democr&aacute;tica e civilizada desse contrato constitucional dependem s&oacute; da vontade das partes que o assinaram. Por isso, devem ser usadas para resolver conflitos, n&atilde;o para ampli&aacute;-los.<br /> <br /> As melhores e mais dur&aacute;veis constitui&ccedil;&otilde;es do mundo s&atilde;o flex&iacute;veis, inclusivas e detalhistas. A do Brasil tamb&eacute;m &eacute; assim. &Eacute; comum ouvir que a nossa Constitui&ccedil;&atilde;o foi muito modificada, pois desde que entrou em vigor j&aacute; teve 105 Emendas. Olhando assim, parece muito. Poucos sabem, por&eacute;m, que a Constitui&ccedil;&atilde;o criada pela ditadura militar, em 1967, foi alterada 109 vezes&nbsp; (em 21 anos). Quer dizer, a ditadura alterou as regras b&aacute;sicas em m&eacute;dia 5,1 vezes por ano; enquanto que a atual Constitui&ccedil;&atilde;o Federal foi alterada em m&eacute;dia 3,5 vezes por ano. &Eacute; contraintuitivo, mas o regime democr&aacute;tico vigente &eacute; mais est&aacute;vel do que foi a ditadura. Por outro lado, &eacute; bom para a democracia que as Constitui&ccedil;&otilde;es possam ser modificadas ao longo do tempo. Nossa Constitui&ccedil;&atilde;o tem apenas 18 artigos fundamentais que n&atilde;o podem ser revogados, ou seja, 7,2% de todo o texto. Todo o resto pode ser modificado democraticamente, com as regras apropriadas.<br /> <br /> Al&eacute;m de flex&iacute;vel, essa nossa Constitui&ccedil;&atilde;o &eacute; tamb&eacute;m inclusiva, na medida em que &eacute; plural, abrange muitos temas e pro&iacute;be qualquer discrimina&ccedil;&atilde;o. Nossa Constitui&ccedil;&atilde;o tamb&eacute;m &eacute; detalhista. &Eacute; um erro supor que isso seja uma desvantagem. Bem ao contr&aacute;rio. Constitui&ccedil;&otilde;es muito vagas n&atilde;o s&atilde;o est&aacute;veis. Os EUA, nesse caso, s&atilde;o uma exce&ccedil;&atilde;o, n&atilde;o a regra. As Cartas mais espec&iacute;ficas s&atilde;o melhor compreendidas e melhor aceitas.<br /> <br /> &Eacute; essa Constitui&ccedil;&atilde;o, e nenhuma outra, que pode ajudar o Brasil a superar o momento de crise atual. Ela nos for&ccedil;a ao di&aacute;logo e tem os meios para conter excessos,&nbsp; aventuras e para punir a corrup&ccedil;&atilde;o. &Eacute; preciso interpretar a economia e a pol&iacute;tica a partir do nosso direito constitucional, e n&atilde;o a Constitui&ccedil;&atilde;o a partir de interesses econ&ocirc;micos e pol&iacute;ticos. Se isso est&aacute; sendo proposto, a culpa n&atilde;o &eacute; da Constitui&ccedil;&atilde;o. &Eacute; dos traidores da p&aacute;tria, que traem a todos, na medida que traem esta Constitui&ccedil;&atilde;o.<br /> &nbsp;<br /> <b><i>Carlos Luiz Strapazzon</i></b>, doutor em Direito Constitucional, &eacute; professor da Escola de Ci&ecirc;ncias Jur&iacute;dicas e Sociais da Universidade Positivo.