Nova constituição de Cuba
17 de novembro de 2018 às 12:09
Frei Betto
Cuba se prepara para aprovar uma nova Constituição que trará importantes novidades ao país, como a adoção do parlamentarismo, novas formas de economia mista e o reconhecimento da união homoafetiva. A atual Constituição foi aprovada em 1976 e revela forte influência das Cartas Magnas dos países socialistas do Leste europeu, em especial da União Soviética.<br />
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Agora, ampla mobilização nacional promove nova reforma constitucional. No momento em que escrevo, novembro de 2018, o anteprojeto está sendo submetido à consulta popular e, em seguida, será referendado pela população mediante voto livre, direto e secreto.<br />
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Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, a Constituição cubana sofreu importante reforma em 1992, quando, por exemplo, se retirou o caráter ateu do Estado para introduzir o caráter laico. Fez-se ainda pequena reforma em 2002, ao blindar o caráter socialista da Revolução.<br />
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Diante das teses aprovadas no VI Congresso do Partido Comunista de Cuba, em 2011, ocorreram mudanças no modelo econômico e na organização partidária, o que suscitou a necessidade de nova reforma da Constituição.<br />
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Em maio de 2013, o Birô Político criou o Grupo de Trabalho, presidido por Raúl Castro, para debater o aprimoramento institucional do país. Durante um ano o grupo preparou as bases do atual processo de reforma, aprovadas em junho de 2014. Analisaram-se os impactos de ordem jurídica nas reformas ocorridas no Vietnã e na China. Levaram-se em conta também as reformas constitucionais de Venezuela, Bolívia e Equador.<br />
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O resultado desses estudos foi analisado em fevereiro deste ano pelo Birô Político e, um mês depois, pelo Comitê Central do Partido. Em seguida, o Conselho de Estado, órgão de representação permanente da Assembleia Nacional do Poder Popular (equivalente ao nosso Congresso Nacional), convocou sessão extraordinária para dar início ao processo de reforma, o que aconteceu em dia 2 de junho. O parlamento instituiu a comissão encarregada de preparar o novo projeto constitucional. Um mês depois, um esboço foi submetido à Assembleia Nacional, que recolheu diversas críticas e propostas.<br />
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A população acompanhou os debates por TV e outros meios de comunicação. O parlamento decidiu, então, submeter o texto à consulta popular, de modo a enriquecê-lo com a participação direta do povo, incluídos cidadãos cubanos residentes no exterior.<br />
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O que se debate agora em todo o país não é uma reforma do texto constitucional vigente, mas a aprovação de um novo texto que visa a introduzir mudanças profundas na estrutura do Estado e ampliar o leque de direitos de cidadania, sem prejuízo do caráter socialista da Revolução.<br />
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O texto propositivo contém 224 artigos (87 a mais do que o vigente); são modificados 113 artigos da atual Constituição; mantidos 11; e eliminados 13.<br />
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Não se convocou uma Assembleia Constituinte por respeito à cláusula que assegura à Assembleia Nacional função constituinte.<br />
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<b>Inovações</b><br />
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A nova proposta constitucional reafirma o caráter socialista dos sistemas político, econômico e social de Cuba. É preservado o papel do Partido Comunista como monitor da sociedade e do Estado, destacando-se seu caráter democrático e a importância de vínculo com o povo. Ressalta-se que o Partido não está acima da Constituição e, como ente político, é obrigado a respeitá-la e defendê-la. E em sua atuação não deve substituir os órgãos estatais e administrativos, cujas atribuições são definidas pela Constituição e pelas leis do país.<br />
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O texto ressalta o reconhecimento de Cuba como Estado Socialista de Direito, de modo a reforçar o império da lei e a supremacia da Constituição.<br />
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Esse conceito de Estado de Direito se choca com a tradição socialista, que o considerava liberal e capitalista, e na qual somente cabia uma visão classista do Estado e do Direito. Quem deu o primeiro passo nesta nova direção foi o Vietnã, na reforma constitucional de 2013, quando incorporou o conceito de “<b><i>Estado de Direito Socialista</i></b>”.<br />
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No econômico se mantém, como princípio, a propriedade socialista de todo o povo sobre os meios fundamentais de produção, bem como a direção planificada da economia, mas sem ignorar o papel do mercado. Não se trata de uma economia socialista de mercado, mas de submeter o mercado a um sistema de planificação flexível.<br />
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Reconhece-se a propriedade privada, que a Constituição não cria, já que nunca deixou de existir em Cuba. Admite-se o trabalho por conta própria (contapropismo) e o empreendedorismo individual, com direito de contratação de mão de obra. Porém, proíbe-se a concentração de propriedades em mãos de pessoas ou corporações não estatais, com o objetivo de preservar “<b><i>os limites compatíveis com os valores socialistas de equidade e justiça social</i></b>”. Valoriza-se a propriedade cooperativa.<br />
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Novidade é como se estrutura a propriedade mista, até agora vinculada exclusivamente ao investimento estrangeiro e relacionada sempre com a propriedade estatal. Entende-se agora como mista a integração de duas ou mais formas de propriedades, incluídas a privada e a cooperativa, não apenas a estatal. No entanto, a empresa estatal é considerada a principal protagonista da economia e se reconhece a autonomia de seu funcionamento.<br />
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Quanto à cidadania, reconhece-se o princípio da cidadania efetiva. Um cubano pode adquirir outra cidadania sem prejuízo da original.<br />
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O novo texto constitucional reforça a defesa dos direitos humanos reconhecidos em tratados internacionais dos quais Cuba é signatária. Ressalta-se a importância de proteção do meio ambiente e de combate aos efeitos das mudanças climáticas.<br />
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<b>Questões de gênero</b><br />
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Adota-se uma concepção de direitos humanos na qual se reconhece a sua indivisibilidade, irrenunciabilidade e interdependência, em correspondência com o princípio de progressividade e sem discriminação. Amplia-se o direito de igualdade, e se proíbe toda discriminação por “<b><i>razões de sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, origem étnica, cor da pele, crença religiosa, deficiência física ou mental, origem nacional ou qualquer outra lesiva à condição humana</i></b>”. Se oferecem garantias às liberdades de pensamento, consciência, expressão e convicção religiosa.<br />
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Abandona-se a atual concepção de matrimônio como relação entre um homem e uma mulher, e se introduz o conceito de relação “<b><i>entre duas pessoas</i></b>”. Diante desta proposta, a sociedade cubana se divide. Há quem prefira manter o atual conceito de matrimônio, relação entre um homem e uma mulher; os que apoiam a nova redação ou o novo conceito de relação “<b><i>entre duas pessoas</i></b>”; quem aceite o reconhecimento civil dos casais de fato, mas não o matrimônio; e outros que estão de acordo, mas, em se tratando de filhos, limitam o direito à adoção; e por último, alguns advogam o conceito de matrimônio como a união “<b><i>de duas ou mais pessoas</i></b>”.<br />
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Amplo leque é oferecido quanto se trata de direitos trabalhistas, já que o Estado deixou de ser o único empregador, e hoje há variadas formas não estatais de empregabilidade.<br />
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Educação e saúde são mantidas sob responsabilidade do Estado e com caráter universal e gratuito. Abre-se, entretanto, a brecha, em caráter excepcional, para que determinados serviços de saúde não imprescindíveis e parte do ensino de pós-graduação possam ser remunerados.<br />
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O Estado admite que alguns direitos econômicos e sociais, por ora, não há como assegurá-los, e incluí-los seria tornar a Constituição uma obra de ficção. Ficam, porém, regulados com projeção de progressividade, decisão que gera certa inconformidade entre a população, como os direitos à moradia digna, à alimentação e à agua.<br />
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Introduz-se a tutela judicial diante de violação de direitos constitucionais por parte de órgãos e funcionários do Estado, inclusive mediante indenização aos atingidos.<br />
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<b>Parlamentarismo</b><br />
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Na estrutura do Estado são introduzidas importantes mudanças. Criam-se os cargos de Presidente da República e primeiro-ministro. Hoje, o Chefe de Estado de Cuba é o Presidente do Conselho de Estado escolhido pela Assembleia Nacional, que também acumula a função de Chefe de Governo. De acordo com o projeto constitucional, o Presidente teria que ser um deputado eleito pela Assembleia Nacional, desde que tenha a idade mínima de 35 anos e, máxima de 60, para seu primeiro mandato. O mandato seria de 5 anos e possibilidade de uma única reeleição.<br />
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O Presidente não cumprirá apenas funções cerimoniais e de representação. Ele é quem proporá à Assembleia Nacional o nome do primeiro-ministro, e este deverá lhe prestar contas de sua gestão, bem como será o presidente do Conselho de Ministros.<br />
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A comissão preparatória considera fundamental estabelecer limites de tempo para cargos importantes do Estado, na linha do que indicaram os últimos congressos do Partido, ainda mais porque, com o avançar do tempo, já não se justifica a legitimidade histórica dos que combateram em Sierra Maestra.<br />
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A Assembleia Nacional do Poder Popular mantém seu caráter de órgão supremo, único com poder constituinte e legislativo, encarregada de preencher os cargos mais importantes do Estado, à qual prestarão contas os órgãos e organismos do Estado. O presidente, vice-presidente e secretário do Parlamento ocuparão as mesmas funções no Conselho de Estado. E é o Parlamento, e não o poder judiciário, que vela pela aplicação da Constituição, o que é motivo de polêmica nos debates em torno do projeto constitucional, mesmo considerando que este estabelece maior independência funcional ao sistema judiciário.<br />
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Nas províncias (equivalentes aos estados da federação brasileira), se suprimem as assembleias do Poder Popular e se constitui um governo formado por um governador e um Conselho Provincial, presidido pelo governador e integrado pelos presidentes das assembleias municipais e todos que exercem funções de direção administrativa nos municípios. Discute-se se o governador deve ser eleito ou designado.<br />
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Cria-se o Conselho Eleitoral Nacional, encarregado de organizar, dirigir e supervisionar as eleições e outros processos de consulta popular.<br />
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Este projeto está sendo debatido em centros de trabalho, escolas, unidades militares e bairros. “<b><i>Podemos afirmar que estamos perante um exercício único de democracia real e efetiva, e de um processo constituinte igualmente paradigmático com o povo como verdadeiro protagonista</i></b>”, declarou Homero Acosta, secretário do Conselho de Estado.<br />
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Terminada a consulta popular em 15 de novembro, a comissão redatora avaliará todas as propostas. Em seguida, apresentará um novo projeto à Assembleia Nacional, da qual resultará a nova Constituição da República de Cuba. Então, será submetida a plebiscito por votação direta e secreta de todos os eleitores cubanos, de modo a adquirir plena legitimidade democrática.<br />
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<b><img src="http://www.novoeste.com/uploads/image/artigos_frei-betto.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br />
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Frei Betto</b>. Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")<br />
Fonte: <a href="http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13563-nova-constituicao-de-cuba" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><i><u>http://www.correiocidadania.com.br/</u></i></span></a>