A força do passado que não passa no Brasil. Sabe por quê?

28 de fevereiro de 2019 às 18:04

Luiz Flávio Gomes
<div style="text-align: center;"><i><b><span style="font-size: x-small;"><img src="/uploads/image/img_a-forca-do-passado-que-nao-passa-no-brasil_senhora-e-escravos-1860-bahia.jpg" width="450" height="265" align="middle" alt="" /><br /> Senhora em liteira cercada por escravos na Bahia em 1860</span></b></i></div> <br /> No Pal&aacute;cio da Aclama&ccedil;&atilde;o (BA), um esc&acirc;ndalo escravagista. No Pal&aacute;cio das Esmeraldas (GO), um baile funk promovido pelas filhas do governador. Os dois epis&oacute;dios mostram a confus&atilde;o entre a coisa p&uacute;blica e a particular.<br /> <br /> Escravagismo e confus&atilde;o das propriedades familiares com a coisa p&uacute;blica (patriarcalismo e cordialismo). &Eacute; a for&ccedil;a do passado que n&atilde;o passa. &Eacute; a velha ordem colonial que n&atilde;o se extingue. &Eacute; a modernidade atrasada. &Eacute; o pa&iacute;s do ger&uacute;ndio, sempre &ldquo;em desenvolvimento&rdquo;. &Eacute; a barb&aacute;rie que busca n&atilde;o dar espa&ccedil;o para a civiliza&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> Na festa de comemora&ccedil;&atilde;o dos 50 anos da socialite Donata Meirelles, casada com o publicit&aacute;rio Nizan Guanaes, a anfitri&atilde; posou de sinh&aacute; ao lado de mulheres negras e sorridentes fantasiadas de escravas. Cena que n&atilde;o foi captada nem sequer pela perspic&aacute;cia sociol&oacute;gica de Gilberto Freyre, no Casa Grande &amp; Senzala.<br /> <br /> As filhas do governador de Goi&aacute;s, Ronaldo Caiado (DEM), passaram pelo Pal&aacute;cio oficial para um baile privado. Uso da coisa p&uacute;blica como se fosse um quintal particular. Nosso passado colonial, nossa heran&ccedil;a escravocrata e patriarcal, nossa cordialidade (bandida), que garantem &agrave;s elites do atraso ou a seus familiares odiosos privil&eacute;gios e caprichos, ainda est&atilde;o absolutamente enraizados em nosso tecido social. &Eacute; o moderno no colonial, &eacute; o arcaico no moderno.<br /> <br /> Al&eacute;m da simbologia das extravag&acirc;ncias em pal&aacute;cios p&uacute;blicos, as personagens desse presente-passado convergem na vis&atilde;o de mundo que defendem, qual seja, a do abandono dos direitos das pessoas, a exist&ecirc;ncia de pessoas irrelevantes, desprez&iacute;veis.<br /> <br /> N&atilde;o titubeiam sugerir reformas injustas contra as parcelas mais carentes da popula&ccedil;&atilde;o, aceitam o trabalho escravo como algo &ldquo;natural&rdquo; e se valem das suas for&ccedil;as familiares para influenciar a gest&atilde;o da coisa p&uacute;blica. Praticam atos que revelam ser pertencentes &agrave;s elites iliberais do poder, que usam o Estado ou as coisas p&uacute;blicas para satisfa&ccedil;&atilde;o dos interesses privados.<br /> <br /> No nosso pa&iacute;s, desde 1822, existem mesmo muitos liberais de fachada que, na verdade, s&atilde;o como &ldquo;drogaditos&rdquo; iliberais dependentes dos favores do Estado, segundo as regras do capitalismo de la&ccedil;os, de amizades, de rela&ccedil;&otilde;es.<br /> <br /> Muitos fazem fortunas com o dinheiro p&uacute;blico e n&atilde;o perdem nenhuma oportunidade de empunhar a bandeira do &ldquo;Estado M&iacute;nimo&rdquo; (para os outros), que significa, na verdade, &ldquo;Estado M&aacute;ximo&rdquo; para seus exclusivos interesses.<br /> <br /> Traficam financiamentos eleitorais com absoluta naturalidade, cobrando-se depois os favores estatais como isen&ccedil;&atilde;o e ren&uacute;ncias fiscais, que atingiram, em 2018, 5% do PIB. Usam cargos p&uacute;blicos para a satisfa&ccedil;&atilde;o dos interesses privados, tal qual o &ldquo;homem cordial&rdquo; de S&eacute;rgio Buarque de Holanda.<br /> <br /> Esses flashs do nosso cotidiano e suas personagens demonstram o qu&atilde;o distante estamos de superar nossas ra&iacute;zes hist&oacute;ricas. N&atilde;o basta propagar a ideia de que a culpa &eacute; dos ib&eacute;ricos, &eacute; da tradi&ccedil;&atilde;o. N&atilde;o existe nenhuma tradi&ccedil;&atilde;o determinista, cujo passado defina incontornavelmente o futuro.<br /> <br /> Portugal hoje est&aacute; muito bem, obrigado! Melhorou suas institui&ccedil;&otilde;es, busca a civiliza&ccedil;&atilde;o, com trope&ccedil;os, mas sabe onde quer chegar. No Brasil nossas elites do poder continuam colocando em pr&aacute;tica seu projeto de longa dura&ccedil;&atilde;o que consiste na domina&ccedil;&atilde;o olig&aacute;rquica para saquear a na&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> Reiteradamente aqui se celebra o passado colonial e sua estrutura patriarcal e escravagista, sob a roupagem moderna de um baile funk ou de uma celebra&ccedil;&atilde;o festiva.<br /> <br /> As elites do poder, leia-se, as castas, apregoam a meritocracia garantida aos seus herdeiros enquanto suprimem direitos da maioria absoluta da popula&ccedil;&atilde;o propriet&aacute;ria ou de classe m&eacute;dia ou da classe trabalhadora precarizada ou dos exclu&iacute;dos. As castas desfrutam, se enriquecem, &agrave;s custas do &ldquo;resto&rdquo;.<br /> <br /> Compactuam-se com seus v&iacute;cios e virtudes independente de governos, que passam. A roda continua a girar com as suas engrenagens viciadas, mas at&eacute; aqui eficientes no menosprezo e no desprezo com a Rep&uacute;blica.<br /> <br /> S&eacute;rgio Buarque de Holanda j&aacute; profetizava em seu cl&aacute;ssico Ra&iacute;zes do Brasil que dar&iacute;amos ao mundo o &ldquo;Homem Cordial&rdquo;. Ele se revela todos os dias nos nossos costumes e nas nossas tradi&ccedil;&otilde;es. S&eacute;rgio Buarque, se visto como narrador das elites, estava certo. Ainda estamos longe de nossa revolu&ccedil;&atilde;o e de uma sociedade plural, justa, igualit&aacute;ria e moderna. A for&ccedil;a do passado ainda prevalece. Somos um pa&iacute;s em que o passado n&atilde;o passa, da&iacute; a falta de perspectivas alvissareiras para o futuro, enquanto n&atilde;o sepultarmos definitivamente a velha ordem colonial.<br /> <br /> <i><b><img src="/uploads/image/artigos_luiz-flavio-gomes_jurista-e-professor.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> <br /> Luiz Fl&aacute;vio Gomes</b></i> &eacute; professor, jurista e deputado federal pelo PSB de S&atilde;o Paulo.<br /> <br /> <b><i><br /> Rafael Pereira</i></b> &eacute; professor e pesquisador, doutor em Hist&oacute;ria pela Unicamp. &Eacute; autor de &ldquo;A morte do Homem Cordial: trajet&oacute;ria e mem&oacute;ria na inven&ccedil;&atilde;o de um personagem (S&eacute;rgio Buarque de Holanda, 1902-1982)&rdquo;, Paco Editorial, 2016. <br />