Um apelo ao Supremo Tribunal Federal

08 de julho de 2019 às 16:21

Marco Aurélio de Carval
Processos n&atilde;o podem ter &ldquo;<i>capa</i>&rdquo;.<br /> <br /> O julgador n&atilde;o deve fazer distin&ccedil;&atilde;o entre julgados. Nunca, em circunst&acirc;ncia alguma.<br /> <br /> Juiz fala nos autos. Promotor idem. Pelo menos &eacute; assim que deveria ser.<br /> <br /> Incont&aacute;veis ju&iacute;zes, e, cremos, muitos promotores tamb&eacute;m, calados e escondidos, devem estar envergonhados com a postura adotada pelos personagens desta novela mexicana que ganhou os holofotes da imprensa nacional e internacional nos &uacute;ltimos dias.<br /> <br /> Bem sabem o quanto estes fatos comprometem as pr&oacute;prias institui&ccedil;&otilde;es a que pertencem.<br /> <br /> &Eacute; preciso haver uma dist&acirc;ncia obrigat&oacute;ria entre as atribui&ccedil;&otilde;es do acusador e a de um juiz - de um juiz justo.<br /> <br /> E &eacute; preciso fazer valer, no caminhar dos atos processuais, o sistema acusat&oacute;rio em toda sua ess&ecirc;ncia, com foco especial no discurso jur&iacute;dico, num atuar c&ecirc;nico cauteloso pelas consequ&ecirc;ncias dos atos restritivos, e , tanto mais, em um agir contra majorit&aacute;rio na prote&ccedil;&atilde;o dos direitos fundamentais, nas raz&otilde;es de decidir e na parte dispositiva do decisum. S&atilde;o alguns exemplos de uma lista que n&atilde;o se pretende esgotar.<br /> <br /> Pela natureza origin&aacute;ria vingativa do Poder Punitivo, uma marca primitiva em seu DNA, &eacute; fundamental desenvolver o cuidado para que n&atilde;o se compreenda um juiz como um agente estatal de seguran&ccedil;a p&uacute;blica, ou uma esp&eacute;cie de super-her&oacute;i contempor&acirc;neo, ou at&eacute; mesmo como um &ldquo;<i>digital influencer</i>&rdquo; em redes e c&iacute;rculos sociais.<br /> <br /> O agente p&uacute;blico, personagem da trama acusat&oacute;ria, deve ter uma esp&eacute;cie de lei interna: daqui eu n&atilde;o posso passar.<br /> <br /> O grau de eros&atilde;o, de destrui&ccedil;&atilde;o, ou, quem sabe, da fal&ecirc;ncia completa do sistema acusat&oacute;rio, ganhou maior contorno dada a dimens&atilde;o p&uacute;blica dos interlocutores destes &uacute;ltimos lament&aacute;veis epis&oacute;dios revelados pelo site The Intercept.<br /> <br /> Um tiro de canh&atilde;o no nosso j&aacute; t&atilde;o combalido Estado de Direito, recentemente fraturado por um impeachment sem crimes de responsabilidade, por um ativismo judicial sem precedentes na hist&oacute;ria do pa&iacute;s e por constantes (re)interpreta&ccedil;&otilde;es do texto constitucional em raz&atilde;o de um tal &ldquo;<i>sentimento social</i>&rdquo;.<br /> <br /> Messi&acirc;nicos, vaidosos e muito pretensiosos, os referidos agentes p&uacute;blicos, reunidos em uma &ldquo;<i>sala de justi&ccedil;a virtual</i>&rdquo;, pretendiam nos conduzir a um &ldquo;<i>o&aacute;sis republicano</i>&rdquo;.<br /> <br /> Nem uma trag&eacute;dia grega, com o caracter&iacute;stico contorno moralista, e sob os ausp&iacute;cios dos deuses, conseguiria ilustrar com detalhes t&atilde;o coloridos o que se extrai das conversas entre Moro e Dellagnol, e entre eles e tantos outros procuradores da For&ccedil;a Tarefa da Opera&ccedil;&atilde;o Lava Jato.<br /> <br /> A travessia contra a corrup&ccedil;&atilde;o tinha uma forma e um enredo, assim como em uma escola de samba.<br /> <br /> A letra, pomposa, foi puxada por respeit&aacute;veis( !?) &ldquo;<i>homens do Direito</i>&rdquo;, acima de toda e qualquer suspeita .<br /> <br /> Como adere&ccedil;os, a alegoria do &ldquo;<i>bem contra o mal</i>&rdquo; e as apresenta&ccedil;&otilde;es quase infantis de PowerPoint, pr&oacute;prias de &ldquo;<i>quem deve ter aprendido a jogar bolinha de gude em carpetes de veludo</i>&rdquo;.<br /> <br /> Tudo embalado pelo refr&atilde;o legalista: &ldquo;<i>estamos agindo dentro da lei, legitimados por &oacute;rg&atilde;o colegiado</i>&rdquo;.<br /> <br /> Hipocrisia pura.<br /> <br /> No mundo real, estes personagens usurparam da nobre fun&ccedil;&atilde;o p&uacute;blica que abra&ccedil;aram , e devem, pois,&nbsp; responder rigorosamente por isso.<br /> <br /> Moro, entre tantas outras graves ilegalidades, indicou testemunhas aos procuradores do caso sobre o qual deveria lan&ccedil;ar &ldquo;<i>olhos imparciais</i>&rdquo;, ignorou a prova dos autos (e a falta de) , e desrespeitou incont&aacute;veis vezes a defesa t&eacute;cnica e, assim, o pr&oacute;prio direito sagrado de defesa.<br /> <br /> Conduziu, com for&ccedil;a e foco, cada etapa do processo, com o apoio vergonhoso de um procurador bajulador e muito mal preparado.<br /> <br /> Agora, sabe-se que mesmo internamente estas posturas foram reconhecidas como inadequadas e escandalosamente violadoras de preceitos &eacute;ticos e legais.<br /> <br /> Sabe-se, tamb&eacute;m, que testemunhos foram constru&iacute;dos com o &uacute;nico e exclusivo objetivo de dar amparo a teses mentirosas da acusa&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> O caso do executivo L&eacute;o Pinheiro, revelado pela Folha de S. Paulo desse &uacute;ltimo domingo, &eacute; apenas mais uma escandalosa demonstra&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> A&ccedil;&atilde;o meticulosamente orquestrada com um &uacute;nico e exclusivo objetivo: eliminar das elei&ccedil;&otilde;es presidenciais passadas o seu franco favorito.<br /> <br /> A omiss&atilde;o, entretanto, &ldquo;<i>&eacute; o pecado que se faz n&atilde;o fazendo</i>&rdquo;.<br /> <br /> Muitos discordaram, mas se calaram...<br /> <br /> Quem sabe agora, com as recentes revela&ccedil;&otilde;es, resolvam se manifestar. At&eacute; mesmo para se diferenciarem e distinguirem.<br /> <br /> N&atilde;o queremos presenciar o esgotamento do que &eacute; certo ou errado ou, por fim, o pr&oacute;prio r&eacute;quiem do Direito.<br /> <br /> Mas h&aacute; sempre uma sa&iacute;da, ainda que n&atilde;o seja para muitos emergencial.<br /> <br /> &Eacute; a porta constitucional, com um letreiro luminoso, claro e inegavelmente direcionador para a solu&ccedil;&atilde;o dos problemas, inclusive os desse epis&oacute;dio.<br /> <br /> Ressalte-se que n&atilde;o estamos em uma busca por um voluntarismo judicial ou por uma constitui&ccedil;&atilde;o para chamarmos de nossa.<br /> <br /> &Eacute; chegada a hora de arrumarmos de forma clara o ambiente do sistema acusat&oacute;rio, n&atilde;o s&oacute; declarando nulos os atos que violam flagrantemente regras constitucionais e processuais.<br /> <br /> Precisamos , tamb&eacute;m, olhar para o espa&ccedil;o c&ecirc;nico dos personagens do processo penal e para seus &ldquo;assentos&rdquo; na audi&ecirc;ncia.<br /> <br /> Temos que romper com esse modelo linear de juiz e promotor na a&ccedil;&atilde;o penal, trazer o &oacute;rg&atilde;o de acusa&ccedil;&atilde;o, com todo seu status, para uma paridade de armas com a defesa.<br /> <br /> Quem olha, precisa ver e saber que s&atilde;o diferentes, como placas ou sinais de tr&acirc;nsito, sem dubiedades.<br /> <br /> At&eacute; no olhar do p&uacute;blico, dos espa&ccedil;os da Justi&ccedil;a, no lugar de fala das partes, a diferen&ccedil;a precisa ser externada. N&atilde;o deixa de ser impactante ver um promotor de Justi&ccedil;a ao lado do juiz, na mesma mesa e posi&ccedil;&atilde;o, lado a lado.<br /> <br /> Outro ponto essencial &eacute; a situa&ccedil;&atilde;o dos r&eacute;us em situa&ccedil;&atilde;o de vulnerabilidade que lotam os c&aacute;rceres brasileiros.<br /> <br /> O Supremo Tribunal Federal j&aacute; afirmou na ADPF 347 que nosso sistema prisional &eacute; um estado de coisas flagrantemente inconstitucional, com constantes viola&ccedil;&otilde;es aos direitos fundamentais. Ponto ineg&aacute;vel.<br /> <br /> O processo n&atilde;o pode ser a negativa do pr&oacute;prio Direito, n&atilde;o pode ser ele pr&oacute;prio um instrumento de viola&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> Deve haver uma equival&ecirc;ncia e proporcionalidade entre o processo e a san&ccedil;&atilde;o penal, n&atilde;o sendo exigido do portador de direitos fundamentais uma antecipa&ccedil;&atilde;o de pena ou , mesmo, a sua execu&ccedil;&atilde;o ap&oacute;s o segundo grau quando ainda n&atilde;o h&aacute; esgotamento das fases recursais.<br /> <br /> Nesse epis&oacute;dio das conversas, onde aparece a confus&atilde;o entre o juiz e o acusador, vem logo &agrave; mem&oacute;ria a obriga&ccedil;&atilde;o de que devemos redobrar a luta para que se cumpra o princ&iacute;pio da presun&ccedil;&atilde;o de inoc&ecirc;ncia (art. 5&ordm;, LVII, CF) , segundo o qual &ldquo;<i>ningu&eacute;m ser&aacute; considerado culpado at&eacute; o tr&acirc;nsito em julgado de senten&ccedil;a penal condenat&oacute;ria</i>&rdquo;.<br /> <br /> Aqui temos duas certezas, ineg&aacute;veis, at&eacute; para quem relativiza ou v&ecirc; a norma de forma torta: n&atilde;o aplicar a presun&ccedil;&atilde;o na sua densidade vai gerar, como tem acontecido, um encarceramento em massa dos pretos, pobres e perif&eacute;ricos. Vai gerar, tamb&eacute;m, o que &eacute; igualmente grave, a pris&atilde;o de centenas de pessoas inocentes condenadas sem o respeito ao devido processo legal, seja por erros judiciais, ou, ainda pior, pela a&ccedil;&atilde;o deliberadamente criminosa de agentes p&uacute;blicos &aacute;vidos pelos conhecidos &ldquo;<i>15 minutos de fama</i>&rdquo;.<br /> <br /> As defensorias p&uacute;blicas do Brasil t&ecirc;m lidado com isso, basta ver os alarmantes dados j&aacute; divulgados sobre o tema.<br /> <br /> Cada vez se prende mais, e cada vez se prende mais injustamente! A presun&ccedil;&atilde;o de inoc&ecirc;ncia n&atilde;o pode ser corrompida em raz&atilde;o de um ilus&oacute;rio combate &agrave; corrup&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> Longe de ignorar a gravidade da corrup&ccedil;&atilde;o, mal que invade tanto a iniciativa privada como a vida p&uacute;blica.<br /> <br /> O combate a um problema sist&ecirc;mico e complexo &ndash; que inclui aperfei&ccedil;oamentos constantes nos programas de integridade e compliance &ndash; n&atilde;o deve corroer o sistema de Justi&ccedil;a e nem t&atilde;o pouco ignorar ou distorcer a lei.<br /> <br /> Neste sentido, a prop&oacute;sito, recomendamos a leitura do magn&iacute;fico livro &ldquo;<i>O Espet&aacute;culo da Corrup&ccedil;&atilde;o</i>&ldquo; (obra em que se analisa como um Sistema Corrupto e o modo de combat&ecirc;-lo est&atilde;o destruindo o pa&iacute;s), escrito pelo jurista Walfrido Warde.<br /> <br /> A presun&ccedil;&atilde;o de inoc&ecirc;ncia precisa ressurgir, pois,&nbsp; de forma majorit&aacute;ria no Supremo Tribunal Federal, com todas as v&ecirc;nias. O tema &eacute; central e precisa ser enfrentado de forma urgente, tanto nas decis&otilde;es monocr&aacute;ticas, de &oacute;rg&atilde;o fracion&aacute;rio , como pela for&ccedil;a singular do plen&aacute;rio. Est&aacute; escrito na Constitui&ccedil;&atilde;o. A interpreta&ccedil;&atilde;o &eacute; literal e n&atilde;o deixa margem a d&uacute;vidas de qualquer natureza.<br /> <br /> Injusti&ccedil;as est&atilde;o acontecendo, pris&otilde;es est&atilde;o ocorrendo.<br /> <br /> A liberdade perdida jamais ser&aacute; restitu&iacute;da. E isto &eacute; realmente o mais grave.<br /> <br /> N&atilde;o se pode, por receio de que se enfrente finalmente a ineg&aacute;vel persegui&ccedil;&atilde;o pol&iacute;tica que mobilizou nos &uacute;ltimos anos todo o aparato estatal de &ldquo;<i>justi&ccedil;a</i>&rdquo;, prejudicar milhares de brasileiros que est&atilde;o aguardando o julgamento, pelo plen&aacute;rio do Supremo Tribunal Federal, das ADCS 43,44 e 54.<br /> <br /> Hoje, &agrave; espera de justa e necess&aacute;ria repara&ccedil;&atilde;o, o Brasil e o mundo desejam a imediata liberta&ccedil;&atilde;o de um homem que, como David Gale nos Estados Unidos, pautou por aqui a discuss&atilde;o sobre o nosso nefasto e medieval sistema de Justi&ccedil;a.<br /> <br /> Sem perder a ternura, mesmo preso, Lula sempre esteve mais livre do que qualquer um dos seus algozes.<br /> <br /> No interior de uma sala fria de Curitiba, Lula pautou o debate nacional sobre o amor e a toler&acirc;ncia.<br /> <br /> Fez da imensa dor pela perda de entes queridos, como o irm&atilde;o Vav&aacute;, o pequeno neto Arthur e o querido, inesquec&iacute;vel e combativo amigo Sigmaringa, um est&iacute;mulo para continuar lutando por sua liberdade e pela comprova&ccedil;&atilde;o de sua inoc&ecirc;ncia.<br /> <br /> Estas sejam talvez as raz&otilde;es para que se possa, no futuro, ver algum sentido ou prop&oacute;sito nesta farsa dantesca cujo roteiro agora se revela.<br /> <br /> Ao Lula, e aos seus queridos familiares, devemos um sincero e retumbante pedido de desculpas.<br /> <br /> Em especial &agrave; Dona Marisa Let&iacute;cia, t&atilde;o injustamente agredida e atingida por estes pseudos &ldquo;<i>Salvadores da P&aacute;tria</i>&rdquo;. A hist&oacute;ria n&atilde;o os perdoar&aacute;!<br /> <br /> E, sobretudo, devemos tamb&eacute;m os nossos sinceros agradecimentos pela oportunidade &uacute;nica de repensarmos, com um olhar cr&iacute;tico, os mecanismos de conten&ccedil;&atilde;o para os abusos e ilegalidades que tanto comprometem a cren&ccedil;a no Estado de Direito e em uma Justi&ccedil;a verdadeiramente imparcial.<br /> <br /> N&atilde;o somos niilistas, mas n&atilde;o queremos, agora, um lembrete de Nietzsche em rela&ccedil;&atilde;o &agrave; nossa Constitui&ccedil;&atilde;o:<br /> <br /> &ldquo;<i>Como nos consolar, a n&oacute;s assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo at&eacute; ent&atilde;o possu&iacute;ra sangrou inteiro sob os nossos punhais &ndash; quem nos limpar&aacute; este sangue? Com que &aacute;gua poder&iacute;amos nos lavar? Que ritos expiat&oacute;rios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato n&atilde;o &eacute; demasiado grande para n&oacute;s? N&atilde;o dever&iacute;amos n&oacute;s mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos deles? Nunca houve um ato maior &ndash; e quem vier depois de n&oacute;s pertencer&aacute;, por causa desse ato, a uma hist&oacute;ria mais elevada que toda a hist&oacute;ria at&eacute; ent&atilde;o</i>&rdquo; &ndash; a Gaia Ci&ecirc;ncia, &sect;125.<br /> <br /> O desafio est&aacute; lan&ccedil;ado.<br /> <br /> H&aacute; um grito preso na garganta...<br /> <b><br /> Marco Aur&eacute;lio de Carvalho</b> &eacute; advogado especializado em Direito P&uacute;blico. S&oacute;cio fundador do Grupo Prerrogativas e da ABJD<br /> <br /> <b>Pedro Carriello</b> &eacute; defensor p&uacute;blico do ERJ atuando no STF/STJ