O PODER INVISÍVEL

10 de julho de 2019 às 16:13

Gaudêncio Torquato
Levar 39 kg de coca&iacute;na na bagagem para o Exterior e, mais, dentro de um avi&atilde;o da frota presidencial, &eacute; coisa para deixar perplexo qualquer cidad&atilde;o. O sargento da Aeron&aacute;utica, Manoel Silva Rodrigues, flagrado em Sevilha, na Espanha, onde aguardava a comitiva do presidente Bolsonaro de volta da reuni&atilde;o do G-20, em Osaka, no Jap&atilde;o, pode desvendar o mist&eacute;rio: como a droga usa &ldquo;mulas&rdquo; das For&ccedil;as Armadas para sair do pa&iacute;s?<br /> <br /> O lama&ccedil;al est&aacute; em todas as partes, at&eacute; nos santu&aacute;rios considerados sagrados e inviol&aacute;veis, como deveriam ser o Judici&aacute;rio e as For&ccedil;as Armadas. Norberto Bobbio, o fil&oacute;sofo italiano, em seu cl&aacute;ssico O Futuro da Democracia, aponta a elimina&ccedil;&atilde;o do poder invis&iacute;vel como uma das promessas n&atilde;o cumpridas pela democracia.<br /> <br /> Esse poder consiste em a&ccedil;&otilde;es criminosas de grupos que agem nas entranhas da administra&ccedil;&atilde;o p&uacute;blica, dando formato a um duplo sistema de poder, chegando, em certos momentos, a &ldquo;peitar&rdquo; a estrutura formal de mando. Exemplo desse fen&ocirc;meno &eacute; o crime perpetrado dentro do sistema de seguran&ccedil;a do pr&oacute;prio presidente da Rep&uacute;blica. Imagine-se o que poderia ocorrer se na equipe houvesse um terrorista, algu&eacute;m capaz de realizar um atentado mortal. <br /> <br /> O fato &eacute; que h&aacute; uma m&aacute;fia agindo nas sombras da administra&ccedil;&atilde;o, n&atilde;o mapeada pelos &oacute;rg&atilde;os de controle e seguran&ccedil;a, como o Gabinete de Seguran&ccedil;a Institucional.<br /> <br /> Pensemos. Um dos princ&iacute;pios basilares da democracia &eacute; o jogo aberto das ideias, o debate, a publicidade dos atos governamentais, a liberdade de express&atilde;o, instrumentos do poder estatu&iacute;do. J&aacute; nos regimes ditatoriais, o Estado pode agasalhar&nbsp; il&iacute;citos e que ferem os direitos dos cidad&atilde;os. As democracias modernas conservam mazelas do autoritarismo, entre as quais a capacidade de confundir o interesse geral com o interesse individual ou de grupos, a preserva&ccedil;&atilde;o de oligarquias e a expans&atilde;o de redes invis&iacute;veis de poder.<br /> <br /> &Eacute; assim que no seio das democracias vicejam novas formas de ilegalidade, teias a&eacute;ticas nas rela&ccedil;&otilde;es pol&iacute;ticas, clientelismo, voto fisiol&oacute;gico, manuten&ccedil;&atilde;o de feudos, etc. Nessa esteira, as massas passam a desacreditar na pol&iacute;tica e em seus atores. A apatia se instala. As taxas de credibilidade nos governantes decrescem, como se observa hoje por aqui, os valores &eacute;ticos se estiolam, os fundamentos morais da sociedade se abalam. O resultado de tudo isso &eacute; o atraso no processo de moderniza&ccedil;&atilde;o pol&iacute;tica e social.<br /> <br /> As reformas que se pretendem promover &ndash; a partir dessa complicada e pol&ecirc;mica reforma tribut&aacute;ria &ndash; n&atilde;o ensejariam, sob essa &oacute;tica, a elimina&ccedil;&atilde;o das deforma&ccedil;&otilde;es da democracia, sen&atilde;o um lento avan&ccedil;o no caminho do aperfei&ccedil;oamento democr&aacute;tico.<br /> <br /> Portanto, sejamos realistas: teremos de conviver, por muito tempo ainda com o poder invis&iacute;vel e suas nefastas consequ&ecirc;ncias. Apurar se pol&iacute;ticos, empres&aacute;rios e organiza&ccedil;&otilde;es t&ecirc;m ou n&atilde;o dinheiro no Exterior, se fizeram parte de esquemas de corrup&ccedil;&atilde;o, se arrombaram os cofres da Petrobras e do BNDES, investigar quem passa informa&ccedil;&otilde;es sigilosas para a Intercept Brasil, ou, ainda, verificar as liga&ccedil;&otilde;es entre procuradores e ju&iacute;zes, s&atilde;o quest&otilde;es que n&atilde;o matam o v&iacute;rus da corrup&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> Funcionar&atilde;o como agulha lancetando um tumor, mas este pode aparecer, a qualquer momento, em outra parte do corpo, caso n&atilde;o seja atacada a origem da doen&ccedil;a. E qual &eacute; a causa? H&aacute; muitas, mas o est&aacute;gio civilizat&oacute;rio de um povo &eacute;, em &uacute;ltima an&aacute;lise, o fator determinante a balizar a trajet&oacute;ria de um pa&iacute;s. Povos d&oacute;ceis, indiferentes, ignorantes, passivos parecem ser da prefer&ecirc;ncia dos governantes, enquanto a democracia necessita de cidad&atilde;os ativos, conscientes, participativos.<br /> <br /> A cidadania ativa &eacute; fruto da educa&ccedil;&atilde;o. N&atilde;o adianta fazer reforma pol&iacute;tica - mudar sistema de voto, exigir fidelidade partid&aacute;ria, - se os s&uacute;ditos, na simbologia de Bobbio, se assemelham a um bando de ovelhas pastando capim.<br /> <br /> A promessa da democracia - de educar os cidad&atilde;os - &eacute;, por isso mesmo, compromisso priorit&aacute;rio para que o Brasil possa sair do est&aacute;gio pr&eacute;-civilizat&oacute;rio que se encontra em mat&eacute;ria de cidadania pol&iacute;tica.<br /> <br /> Quando todos os brasileiros estiverem repartindo o mesmo prato cultural, inseridos no banquete da consci&ecirc;ncia cidad&atilde;, nossas doen&ccedil;as culturais poder&atilde;o ser curadas com simples vitaminas.<br /> &nbsp;<br /> <b><i><img src="/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Gaud&ecirc;ncio Torquato</i></b>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o Twitter@gaudtorquato