CACAREJOS NO ESTADO-ESPETÁCULO

19 de agosto de 2019 às 13:52

Gaudêncio Torquato
Os estilos da galinha e da pata servem para comparar governantes, partidos e, de modo geral, os pol&iacute;ticos. A primeira p&otilde;e um ovo pequenino, mas cacareja e todo mundo v&ecirc;, enquanto a segunda p&otilde;e um ovo maior e ningu&eacute;m nota. O ovo da pata, segundo os nutricionistas, &eacute; mais completo que o da galinha, mas &eacute; este que gera aten&ccedil;&atilde;o, inten&ccedil;&atilde;o, desejo e a&ccedil;&atilde;o &ndash; a f&oacute;r&not;mula AIDA &ndash; para estimular seu consumo. E o &ecirc;xito se deve porque a f&ecirc;mea do galo sabe alardear seu produto, cumprindo rigorosamente o preceito maquiav&eacute;lico: &ldquo;o vulgo s&oacute; julga aquilo que v&ecirc;.&rdquo; <br /> <br /> Pois bem, Bolsonaro adota o estilo de galinha. Lula, tamb&eacute;m. Ambos apreciam cacarejar em palanques, usando express&otilde;es acusat&oacute;rias, s&iacute;mbolos populares, abordagens que primam pelo mau gosto e, em alguns casos, entrando no po&ccedil;o do &ldquo;baixo-cal&atilde;o&rdquo;. H&aacute; dias, indagado sobre se &eacute; poss&iacute;vel preservar o meio ambiente, o presidente sugeriu ao rep&oacute;rter &ldquo;fazer coc&ocirc; dia sim, dia n&atilde;o, para reduzir a polui&ccedil;&atilde;o ambiental&rdquo;. Noutra feita, indignado, disse que basta &ldquo;um cocozinho petrificado de &iacute;ndio para barrar licenciamento de obras&rdquo;. <br /> <br /> Lula tamb&eacute;m tinha das suas. No Rio Grande do Sul, em alus&atilde;o a um t&uacute;nel na BR-101, mandou: &ldquo;N&atilde;o podemos parar tudo por causa de uma perereca, como aconteceu com o t&uacute;nel em Os&oacute;rio. O Pa&iacute;s n&atilde;o pode ficar a servi&ccedil;o de uma perereca....Nem que eu tiver que me atarracar com aquela perereca, vou andar nesse t&uacute;nel. E pe&ccedil;a para a perereca sair de perto, porque eu vou vir meio nervoso.&quot;<br /> <br /> Para compreender como o cacarejo adquiriu import&acirc;ncia central na pol&iacute;tica, &eacute; oportuno lembrar as tintas que desenham nossa iden&not;tidade. Os estudiosos do ethos nacional costumam apontar, entre os valores que o plasmam, a falta de precis&atilde;o, a adjetiva&ccedil;&atilde;o excessiva, o individualismo, a propens&atilde;o ao exagero. Somos um povo de lingua&not;gem destemperada e de pensar fluido, indeterminado, misterioso. Por isso, o Brasil passeia na gangorra, ora como o melhor dos mundos, ora como o pior. <br /> <br /> Prezamos a verborragia. Sob ela, tem sido f&aacute;cil aos nossos governantes p&ocirc;r um aditivo no verbo e exagerar o tamanho de seus feitos administrativos.<br /> <br /> Na era moderna, governantes e pol&iacute;ticos sobem ao palco do Estado-Espet&aacute;culo, onde, com muita saliva, acrescentam palmos de altura ao seu tama&not;nho, elevando as benesses que praticam. No Estado Novo, o Brasil entrou na moldura do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) getulista. No ciclo militar, mergulhamos nas &aacute;guas do Brasil-Pot&ecirc;ncia.&nbsp; Resgatamos os albores democr&aacute;ticos, a par&not;tir de 1986, com o governo Sarney, ouvindo mais uma vez cacarejos que vendiam as gl&oacute;rias de planos econ&ocirc;micos. <br /> <br /> Fal&aacute;cias acabaram frustrando o povo. Perplexos, assistimos ao marketing exacerbado do furac&atilde;o Collor, passamos pelas extravag&acirc;ncias do estilo Itamar e seu topete, ouvimos as falas elaboradas do schollar Fernando Henrique, at&eacute; subirmos ao palanque permanente armado nas ruas durante a era Lula. Sem esquecer o destampat&oacute;rio confuso da dona Dilma Rousseff. Cada qual teve seu modelo de entoar &ldquo;causos&rdquo;, soltar recursos e amarrar apoios.<br /> <br /> Na antiguidade, conta-se sobre Tem&iacute;stocles, o altivo ateniense, que n&atilde;o era de cacarejar. Convidado para tocar citara numa festa, o general declinou: &ldquo;N&atilde;o sei tocar m&uacute;sica, o que sei &eacute; fazer de uma pequena vila uma grande cidade.&rdquo; <br /> <br /> J&aacute; os governantes das nossas tr&ecirc;s esferas federativas afinam o tom, n&atilde;o hesitando em mane&not;jar c&iacute;tara, clarineta ou trombone. Abandonam o foco. Veja-se Bolsonaro. Fala pelos cotovelos. Atira forte nos advers&aacute;rios, alguns com pesados xingamentos. Parece inebriado pelo poder. Gogol j&aacute; dizia: &ldquo;N&atilde;o &eacute; por culpa do espelho que as pessoas t&ecirc;m uma cara errada.&rdquo; A ru&iacute;na provocada pelo mo&not;delo pirot&eacute;cnico de administrar acaba inspirando a verve exagerada dos nossos governantes. <br /> <br /> N&atilde;o se questiona a necessidade do governante de comunicar ao povo as a&ccedil;&otilde;es de governo. &Eacute; dever dos mandat&aacute;rios prestar contas dos atos, o que exige boa comunica&ccedil;&atilde;o. E n&atilde;o deve haver oposi&ccedil;&atilde;o &agrave; decis&atilde;o de quem usa o canal leg&iacute;timo, com mensagem apropriada, no momento prop&iacute;cio e para atingir a p&uacute;blicos adequa&not;dos. O que &eacute; apropriado? Mostrar propostas e fatos. O que &eacute; desapropriado? O uso do palanque todo tempo, com venda de ilus&otilde;es e apelos em dire&ccedil;&atilde;o aos aplausos. O Brasil precisa de menos Estado-Espet&aacute;culo e mais Estado-Cidad&atilde;o. <br /> &nbsp;<br /> <b><i><img src="/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Gaud&ecirc;ncio Torquato</i></b>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o Twitter@gaudtorquato