A PODERNITE

11 de outubro de 2019 às 08:09

Gaudêncio Torquato
Os governantes, regra geral, padecem de grave doen&ccedil;a: a podernite. Que afeta, sobretudo, membros do Poder Executivo, a partir do presidente da Rep&uacute;blica, governadores e prefeitos, podendo, ainda, pegar protagonistas de outros Poderes e os corpos da burocracia.<br /> <br /> Como todas as ites, trata-se de uma inflama&ccedil;&atilde;o, que, ao inv&eacute;s de atacar o corpo, invade a alma. Podemos design&aacute;-la como a &ldquo;doen&ccedil;a do poder&rsquo;&rdquo;. Se algu&eacute;m quiser associ&aacute;-la ao egotismo, a import&acirc;ncia que uma pessoa atribui a si mesmo, est&aacute; correto, pois os conceitos s&atilde;o pr&oacute;ximos.<br /> <br /> O presidente Bolsonaro, vez ou outra, avisa que o poder &eacute; dele. Inclusive, o poder da caneta BIC, substitu&iacute;da pela caneta Compactor, quando tomou conhecimento que a primeira &eacute; de origem francesa. (Bolsonaro, lembremos, azucrinou o presidente Emmanuel Macron por conta da quest&atilde;o amaz&ocirc;nica). O STF, nos &uacute;ltimos tempos, tem pontuado: em &uacute;ltima inst&acirc;ncia, o poder &eacute; nosso. A decis&atilde;o de conceder aos delatados a condi&ccedil;&atilde;o de serem os &uacute;ltimos a falar nas investiga&ccedil;&otilde;es da Lava Jato &eacute; um exemplo do poder da &uacute;ltima palavra.<br /> <br /> O Legislativo, assustado com a invas&atilde;o de suas compet&ecirc;ncias e queixoso da debilidade do governo na frente da articula&ccedil;&atilde;o pol&iacute;tica, assume papel de protagonista principal em mat&eacute;ria de reformas. Nesse ciclo de grandes interroga&ccedil;&otilde;es, cada qual quer ter mais poder. At&eacute; porque no v&aacute;cuo, um poder toma o lugar de outro.<br /> <br /> O poder traz frui&ccedil;&atilde;o, deleite, sentimento de onipot&ecirc;ncia. Governantes e at&eacute; burocratas se acham donos do peda&ccedil;o, tocados pela ideia de que s&atilde;o eles que conferem alegrias e tristezas, fecham e abrem horizontes, fazem justi&ccedil;a.<br /> <br /> A podernite tem graus variados de met&aacute;stase. Nos homens p&uacute;blicos qualificados, talhados pela raz&atilde;o, os tumores s&atilde;o de pequena monta. Nos Estados mais desenvolvidos, com culturas pol&iacute;ticas mais evolu&iacute;das, a doen&ccedil;a n&atilde;o se espalha muito porque as cr&iacute;ticas da m&iacute;dia e de grupos formadores de opini&atilde;o funcionam como antiv&iacute;rus. Nos Estados menos aculturados, dominados por estruturas paternalistas e sistemas feudais, a doen&ccedil;a geralmente chega a graus avan&ccedil;ados.<br /> <br /> O primeiro sintoma da doen&ccedil;a &eacute; a insensibilidade.&nbsp; S&oacute; ouve o que quer ouvir. O grito rouco das ruas &eacute; para eles uma sinfonia distante. Da insensibilidade, deriva a arrog&acirc;ncia. Governantes transformam-se em soberanos, querendo que cidad&atilde;os vistam o manto de s&uacute;ditos e achando que os programas governamentais constituem um favor e n&atilde;o um dever. Nessa esteira, desenvolve-se o assistencialismo, com pequenos sacos de migalhas distribu&iacute;das a esmo.<br /> <br /> A constru&ccedil;&atilde;o da identidade de um Governo transforma-se, assim, em culto &agrave; personalidade, sob os aplausos da pl&ecirc;iade de amigos e oportunistas. Alguns governantes descobriram as vantagens das redes sociais e capricham no envio de mensagens, v&iacute;deos e fotos sobre sua performance,&nbsp; desprezando a s&aacute;bia li&ccedil;&atilde;o de nossos av&oacute;s: &ldquo;elogio em boca pr&oacute;pria &eacute; vitup&eacute;rio&rdquo;.<br /> <br /> O obreirismo inconsequente tamb&eacute;m passa ser eixo das administra&ccedil;&otilde;es, no fito de fixar marcas. E &eacute; porque faltam recursos. Vivemos momentos de quebradeira geral. Mas o &ldquo;balonismo pessoal&rdquo; (fen&ocirc;meno de enchimento do bal&atilde;o do ego) &eacute; impulsionado por levas de &aacute;ulicos. Ocorre que o Produto Nacional Bruto da Felicidade &ndash; o PNBF &ndash; n&atilde;o sobe. Os bolsos continuam secando. E a indigna&ccedil;&atilde;o social se expande.<br /> <br /> Por isso, as pessoas se afastam dos governantes. S&oacute; mesmo grandes sustos - como queda de popularidade - trazem-nos &agrave; realidade. Nesse momento, percebem que o poder &eacute; uma quimera. Volta-se contra eles mesmos.<br /> <br /> Senhores, esta &eacute; a dura realidade: a gl&oacute;ria m&iacute;tica de palanques, os pal&aacute;cios, os minist&eacute;rios e as inst&acirc;ncias da Justi&ccedil;a s&atilde;o coisas passageiras. Mudam como as nuvens. (A prop&oacute;sito, as caravanas que pediam Lula Livre hoje se mobilizam para pedir o Lula Preso. Porque da sede da PF em Curitiba onde est&aacute;, ele consegue fazer mais barulho do que em seu apartamento de S&atilde;o Bernardo do Campo). Eita, Brasil mutante, ou se quiserem, Brasil do chiste.<br /> <br /> S&oacute; faltava essa: O procurador de Justi&ccedil;a de Minas Gerais, Leonardo Azeredo dos Santos, ganha R$ 24 mil mensais e garante que esta quantia &eacute; um &ldquo;miser&ecirc;&rdquo;. O que dir&atilde;o os milh&otilde;es de brasileiros desempregados ou aqueles que p&otilde;em no bolso o m&iacute;sero sal&aacute;rio m&iacute;nimo?<br /> <br /> Os pacientes de podernite agem como Vespasiano, o Imperador, que, na beira da morte, ficava gracejando numa cadeira: Ut Puto Deus Fio (Parece que Me Transformo num Deus).<br /> <i><b>&nbsp;<br /> </b></i><i><b><img src="/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Gaud&ecirc;ncio Torquato</b></i>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o Twitter@gaudtorquato