Um país de Coringas

11 de outubro de 2019 às 08:14

Elton Duarte Batalha
O filme &quot;<i><b>Coringa</b></i>&quot; estreou recentemente no Brasil e tem provocado muitos coment&aacute;rios por diversas raz&otilde;es distintas. Seja por quest&otilde;es pol&iacute;ticas, sociol&oacute;gicas ou psicol&oacute;gicas, a obra permite uma s&eacute;rie de reflex&otilde;es sobre a humanidade, em geral, e sobre o Brasil, em particular. O desconforto que a pel&iacute;cula produz em parte da plateia &eacute; algo a ser observado com aten&ccedil;&atilde;o. <br /> <br /> O protagonista que d&aacute; nome ao t&iacute;tulo &eacute; algu&eacute;m desequilibrado mentalmente que, ap&oacute;s ficar muito tempo calado, sendo submetido a situa&ccedil;&otilde;es de humilha&ccedil;&atilde;o, explode em f&uacute;ria. Quando isso ocorre, ele passa a apostar no caos, divertindo-se com a balb&uacute;rdia e galvanizando a aten&ccedil;&atilde;o de uma turba ensandecida na cidade. A semelhan&ccedil;a com a vida p&uacute;blica brasileira &eacute; evidente, independentemente de qual orienta&ccedil;&atilde;o ideol&oacute;gica esteja no poder. Seja &agrave; esquerda ou &agrave; direita, as figuras pol&iacute;ticas est&atilde;o primando pela ado&ccedil;&atilde;o de posturas desarrazoadas h&aacute; mais de quinze anos, sentindo-se legitimadas pelo apoio fan&aacute;tico de parte da popula&ccedil;&atilde;o, dado o car&aacute;ter personalista da comunidade nacional. A espetaculariza&ccedil;&atilde;o do mal realizada pelo Coringa, durante uma cena em que &eacute; entrevistado na TV, guarda semelhan&ccedil;a com a atitude ostensiva de desprezo a certo grau de decoro exigido pelo cargo ocupado por alguns l&iacute;deres nacionais, fen&ocirc;meno especialmente observado ap&oacute;s o fim da gest&atilde;o de Fernando Henrique Cardoso.<br /> <br /> Sob o prisma psicol&oacute;gico, interessa observar a postura do palha&ccedil;o magistralmente interpretado por Joaquin Phoenix, sob a dire&ccedil;&atilde;o de Todd Phillips. Em certo momento, o ressentimento e a frustra&ccedil;&atilde;o que o protagonista carrega dentro de si explodem em viol&ecirc;ncia, exteriorizada em atos extremos, aceitos por parte da coletividade, a qual o idolatra. H&aacute; uma mudan&ccedil;a de paradigma em que aquilo que era errado passa a ser o novo certo, dada a influ&ecirc;ncia multiplicadora da a&ccedil;&atilde;o do Coringa. Tal fen&ocirc;meno tamb&eacute;m &eacute; observado em territ&oacute;rio nacional, no campo social e pol&iacute;tico.<br /> <br /> Socialmente, a parcela da popula&ccedil;&atilde;o que n&atilde;o foi ouvida durante muito tempo em quest&otilde;es econ&ocirc;micas e de costumes assomou no cen&aacute;rio da disputa por poder, vociferando o ressentimento que, at&eacute; ent&atilde;o, reprimira. Assim como o protagonista do filme muda seu comportamento (inclusive fisicamente, pois em vez da postura encurvada, passa a caminhar de modo mais ereto) quando tem acesso ao poder materializado em uma arma de fogo, a chegada ao cume pol&iacute;tico pela esquerda ou pela direita tem evidenciado a inabilidade em manter um canal de di&aacute;logo permanente e com fins republicanos com o interlocutor do campo oposto.<br /> <br /> Isso n&atilde;o significa que chegar&atilde;o a um consenso, mas permite a ventila&ccedil;&atilde;o dos canais democr&aacute;ticos, algo em falta no Brasil h&aacute; muitos anos. Quando o Coringa pinta n&atilde;o s&oacute; o rosto, mas a pr&oacute;pria l&iacute;ngua, ele internaliza a personagem. Esse &eacute; o perigo a que est&aacute; exposta a sociedade, quando solta seus monstros antes reprimidos e veste a m&aacute;scara do mal, como demonstram as redes sociais e o ambiente pol&iacute;tico p&oacute;s-FHC.<br /> <br /> &Uacute;ltimo ponto a ser analisado diz respeito &agrave; influ&ecirc;ncia que o filme pode produzir nas pessoas a partir da interpreta&ccedil;&atilde;o sobre a rela&ccedil;&atilde;o entre o personagem principal e o meio no qual est&aacute; inserido.<br /> <br /> Diferentemente do que se tem dito, Coringa n&atilde;o &eacute; v&iacute;tima da sociedade, a qual apenas aciona gatilhos para sua explos&atilde;o, com a imposi&ccedil;&atilde;o de dificuldades severas de sobreviv&ecirc;ncia, inclusive de modo violento em determinados momentos. Ele n&atilde;o &eacute;, de modo algum, inocente, ficando claro desde o in&iacute;cio o dist&uacute;rbio comportamental do protagonista.<br /> <br /> A ideia de que a pel&iacute;cula pode fomentar atos il&iacute;citos tem um pressuposto equivocado: que o bom se torna mau meramente pela indu&ccedil;&atilde;o por fatores externos, sem considerar a semente do mal inerente a todos os seres humanos. N&atilde;o &eacute; um ser &quot;<i><b>do bem</b></i>&quot; que altera sua ess&ecirc;ncia, mas algu&eacute;m que n&atilde;o sabe lidar com as dificuldades existenciais. Como consequ&ecirc;ncia preocupante da referida cr&iacute;tica, pode haver tentativa de censura &agrave; liberdade de express&atilde;o, supostamente pelo efeito que a fic&ccedil;&atilde;o poderia causar sobre a realidade. Tal fen&ocirc;meno &eacute; t&iacute;pico de uma sociedade que retira a responsabilidade dos seus indiv&iacute;duos, infantilizando-os.<br /> <br /> Viol&ecirc;ncia simb&oacute;lica da arte &eacute; catarse, forma de vazar a viol&ecirc;ncia que cada um traz dentro de si, de modo potencial, sem ter que materializ&aacute;-la. O inc&ocirc;modo, talvez, seja provocado pelo fato de que o espectador &eacute; obrigado a ver seu reflexo no espelho. Se a imagem n&atilde;o &eacute; boa, a tend&ecirc;ncia, narcisicamente, &eacute; repeli-la.<br /> <br /> <i><b>Elton Duarte Batalha</b></i>. Professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado. Doutor em Direito.