O SONHO DA GRANDE PÁTRIA

06 de novembro de 2019 às 16:41

Gaudêncio Torquato
O dado &eacute; surpreendente. Cerca de 80 grupos criminosos t&ecirc;m algum controle sobre os pres&iacute;dios. Exercem o extraordin&aacute;rio poder de mandar matar, extorquir, comercializar drogas, enfim, expandir a viol&ecirc;ncia por todo o territ&oacute;rio. A situa&ccedil;&atilde;o preocupa ante a moldura que se desenha, no caso, o fim das pris&otilde;es ap&oacute;s condena&ccedil;&atilde;o em 2&ordf; inst&acirc;ncia. Ah, mas a pris&atilde;o provis&oacute;ria vai continuar, alguns argumentam. Mas a previs&atilde;o &eacute; de que os c&aacute;rceres ficar&atilde;o ainda mais superlotados.<br /> &nbsp; <br /> Hoje, j&aacute; somam 337 mil os presos &ldquo;provis&oacute;rios&rdquo;, 41,5% de todos os encarcerados. A perspectiva &eacute; a de que, acabada a pris&atilde;o ap&oacute;s condena&ccedil;&atilde;o em 2&ordf; inst&acirc;ncia, o pa&iacute;s aprofunde o ciclo da pris&atilde;o provis&oacute;ria. O que seria mais um estrangulamento no nosso sistema prisional. Pior, um retrocesso com o endosso de nossa mais alta Corte. <br /> <br /> Ge&not;neraliza-se a sensa&ccedil;&atilde;o de que o Pa&iacute;s continuar&aacute; a navegar nas ondas da impunidade. Donos de lavanderias de dinheiro, ex&eacute;rcitos do crime, bandidos de todos os espectros, flagrados com a m&atilde;o na massa, continuar&atilde;o leves e soltos, a confirmar a tese de que o Brasil &eacute;, por excel&ecirc;ncia, o territ&oacute;rio da desobedi&ecirc;ncia expl&iacute;cita. Nada mais surpreende. O esculacho chega a tal ponto que os chefes dos grupos criminosos, mesmo jogados em pris&otilde;es long&iacute;nquas dos grandes centros, transformam o c&aacute;rcere em escrit&oacute;rios. O Estado formal n&atilde;o consegue enfrentar o mando do Estado informal.<br /> <br /> Os criminosos, ali&aacute;s, t&ecirc;m na ponta da l&iacute;ngua a indaga&ccedil;&atilde;o: qual a diferen&ccedil;a entre n&oacute;s e os bandidos de colarinho branco?<br /> <br /> Ondas de terror se expandem, sob a express&atilde;o enganadora de governantes que dizem controlar grupos organizados do crime. Balela. O poder invis&iacute;vel, que parece festejar a barb&aacute;rie que consome o Pa&iacute;s, n&atilde;o tem escr&uacute;pulos nem receio de mostrar a cara.<br /> <br /> Elevam-se ao n&iacute;vel do poder do Estado. S&oacute; falta mesmo os grupos criminosos mobilizarem seus &ldquo;ex&eacute;rcitos nas ruas e nos c&aacute;rceres&rdquo; em movimentos c&iacute;vicos pela puni&ccedil;&atilde;o aos &ldquo;criminosos da pol&iacute;tica&rdquo;.&nbsp; &nbsp;<br /> <br /> E n&atilde;o ser&aacute; surpresa se parcela significativa da popula&ccedil;&atilde;o aplaudir a bandidagem do andar de baixo contra a turma que faz zoeira no andar de cima. Afinal de contas, a passarela da criminalidade e o desfile de impunidade assumem dimens&otilde;es grandio&not;sas e formas escandalosas. O ex-juiz S&eacute;rgio Moro at&eacute; imaginou que, na condi&ccedil;&atilde;o de ministro do governo, poderia agregar mais for&ccedil;a e aumentar a estrutura para combater o crime. Ledo engano. O Legislativo, por conveni&ecirc;ncia, faz s&eacute;rias restri&ccedil;&otilde;es aos projetos do ministro. <br /> <br /> O fato &eacute; que, ante a poss&iacute;vel decis&atilde;o do STF no sentido de acabar com a pris&atilde;o de condenados em 2&ordf; inst&acirc;ncia, corruptos e fac&iacute;noras, com o mesmo status perante a lei, v&atilde;o se valer dos mecanismos de protela&ccedil;&atilde;o &ndash; recursos e embargos at&eacute; eventual condena&ccedil;&atilde;o em 3&ordf; inst&acirc;ncia ou em &uacute;ltima e com tr&acirc;nsito em julgado de suas causas.<br /> <br /> N&atilde;o &eacute; de estranhar que a anomia - o descumprimento da lei - tome conta do Pa&iacute;s. Voltaremos aos idos da Col&ocirc;nia e do Imp&eacute;rio. Pin&ccedil;o um caso do passado. Tom&eacute; de Souza, primeiro governador-geral, chegou botando banca. Os crimes proliferavam. Avocou a si a imposi&ccedil;&atilde;o da lei, tirando o poder das ca&not;pitanias. Mandou amarrar um &iacute;ndio que assassinara um colono na boca de um canh&atilde;o.&nbsp; Mas o tiro n&atilde;o assombrou os tupinamb&aacute;s.&nbsp; N&atilde;o havia jeito de evitar a desordem. Foi ent&atilde;o que apareceram as Ordena&ccedil;&otilde;es do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que vigoraram at&eacute; 1830. Severas, estabeleceram a pena de morte para a maioria das infra&ccedil;&otilde;es, coisa que chegou a espantar Frederico, o Grande, da Pr&uacute;ssia, que ao ler Livro das Ordena&ccedil;&otilde;es, indagou: &ldquo;H&aacute; ainda gente viva nas terras de Portugal?&rdquo; Com o tempo, o rigor foi atenuado e o crime voltou com for&ccedil;a. <br /> <br /> Entre sustos e panos quentes, o Brasil semeou a cultura do faz-de-conta na aplica&ccedil;&atilde;o das leis. E a&iacute; passamos a sofrer a doen&ccedil;a espiritual da Na&ccedil;&atilde;o: a indiferen&ccedil;a da popula&ccedil;&atilde;o diante de crimes mais atrozes.<br /> <br /> Esse &eacute; o ambiente que faz florescer o poder invis&iacute;vel, cancro das democracias contempor&acirc;neas. O custo da viol&ecirc;ncia no Brasil passa de cerca de R$ 300 milh&otilde;es por dia, em c&aacute;lculos feitos pelo ex-secret&aacute;rio nacional de Seguran&ccedil;a P&uacute;blica, coronel Jos&eacute; Vicente. Fosse esse o &uacute;nico saldo negativo, o Pa&iacute;s poderia comemorar. Mas o custo emocional &eacute; impag&aacute;vel. Morre-se um pouco a cada dia, levando a esperan&ccedil;a, a f&eacute; e o sonho de termos uma Grande P&aacute;tria. <br /> &nbsp;<br /> <i><b><img src="/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Gaud&ecirc;ncio Torquato</b></i>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o Twitter@gaudtorquato