O entrincheiramento do formalismo no ensino do direito

24 de dezembro de 2019 às 17:50

Thiago Acca
Qual a chance de algu&eacute;m vindo de uma escola p&uacute;blica no in&iacute;cio dos anos 2000 obter sucesso no vestibular da FUVEST? Qual a probabilidade de ingressar na Faculdade de Direito do Largo S&atilde;o Francisco se sequer havia professores de qu&iacute;mica e f&iacute;sica contratados pela minha Escola? Pois foi por ter de lidar com tais dificuldades, e uma vontade imensa de mudar o mundo, que ao entrar na Faculdade de Direito da USP fui tomado por uma felicidade radiante. <br /> <br /> As primeiras recorda&ccedil;&otilde;es acad&ecirc;micas, infelizmente, n&atilde;o s&atilde;o das melhores. Lembro-me de um professor de primeiro semestre dizendo: &ldquo;se querem fazer justi&ccedil;a esse n&atilde;o &eacute; seu lugar, ainda d&aacute; tempo de procurar outro curso&rdquo;. Aulas, em geral, enfadonhas, repetitivas, despreocupadas com os alunos. N&atilde;o havia um cuidado com o processo de aprendizagem. Alguns professores n&atilde;o se acanhavam em espalhar aquelas folhas amareladas sobre a mesa e despudoradamente l&ecirc;-las. Sinceramente, as vezes me questionava se os professores realmente expunham suas ideias para n&oacute;s ou para eles mesmos. Ser&aacute; que percebiam que est&aacute;vamos ali? <br /> <br /> A doutrina entende. A doutrina fala. Mas quem &eacute; essa tal de &ldquo;doutrina&rdquo;? A jurisprud&ecirc;ncia majorit&aacute;ria consolidou o entendimento. A jurisprud&ecirc;ncia &eacute; falha. Mas quem &eacute; essa tal de &ldquo;jurisprud&ecirc;ncia&rdquo;? Em meio a um vocabul&aacute;rio quase m&aacute;gico t&iacute;nhamos de tentar compreender o conte&uacute;do das aulas e dos textos. Sentia-me como na Bruzundanga de Lima Barreto, quando destaca as caracter&iacute;sticas da literatura desse pa&iacute;s imagin&aacute;rio: &ldquo;Quanto mais incompreens&iacute;vel &eacute; ela, mais admirado &eacute; o escritor que a escreve, por todos que n&atilde;o lhe entenderam o escrito&rdquo;. Em uma das aulas um certo professor, muito famoso e querido, desandou a fazer um discurso altissonante e de efeito. Aplaudido no final do discurso eu fui acometido de um constrangimento lancinante de mim mesmo, pois n&atilde;o havia entendido quase nada. Ao questionar meus colegas a respeito do conte&uacute;do da palestra percebi que ningu&eacute;m havia entendido nada tamb&eacute;m. Ent&atilde;o, por que tantos aplausos? Por que esse deslumbramento pelo incompreens&iacute;vel? <br /> <br /> Eis aqui uma das primeiras raz&otilde;es do entrincheiramento do formalismo: a reprodu&ccedil;&atilde;o comprometida. Os juristas reproduzem ideias dos seus mestres n&atilde;o porque necessariamente concordam com elas, mas sim porque querem fazer parte de uma - outra ideia de Barreto - &ldquo;nobreza doutoral&rdquo;. Ningu&eacute;m questiona o status quo. No final das contas muitos s&oacute; querem fazer parte de uma elite que se reproduz pelas Faculdades e Universidades do pa&iacute;s. <br /> <br /> Um dos pap&eacute;is da hist&oacute;ria pode ser a legitima&ccedil;&atilde;o do presente ao se apontar que determinados valores, consensos s&atilde;o praticamente parte da ess&ecirc;ncia humana. Essa vis&atilde;o tem impacto muito contundente no ensino. Eis aqui uma segunda raz&atilde;o do entrincheiramento do formalismo: a naturaliza&ccedil;&atilde;o dos processos de ensino do direito. Esse processo pode ser descrito da seguinte forma: o professor fala, o aluno copia e na prova as respostas referem-se exatamente ao conte&uacute;do exposto em sala aula. <br /> <br /> Em pleno 2019, com alunos que chegam &agrave;s Universidade j&aacute; nascidos no s&eacute;culo XXI, o uso de qualquer tipo de tecnologia em sala de aula ainda &eacute; um sacril&eacute;gio. Qualquer coisa para al&eacute;m de uma aula expositiva pode ser interpretado como um descaminho. Professor do direito de verdade sabe o C&oacute;digo de cor. Faz os alunos decorarem a lei. Faz par&aacute;frases do artigo x da lei y. Semin&aacute;rios, estudos de caso, v&iacute;deos, cinema, literatura, role play, trabalhos em grupo, exerc&iacute;cios em sala, debates entre alunos, simula&ccedil;&otilde;es, leitura de decis&otilde;es dos Tribunais, dentre outras coisas, parece mais uma tentativa do professor se desvincular da sua real obriga&ccedil;&atilde;o: falar e falar. <br /> <br /> H&aacute; quinze anos dedico-me &agrave; doc&ecirc;ncia e &agrave; pesquisa. Nesse contexto h&aacute; uma pergunta que me incomoda enormemente: &ldquo;Al&eacute;m de dar aula voc&ecirc; trabalha?&rdquo;. No mundo jur&iacute;dico ser professor &eacute; quase uma n&atilde;o-op&ccedil;&atilde;o, ou seja, quem d&aacute; aula est&aacute; l&aacute; por acaso ou porque n&atilde;o conseguiu obter uma carreira melhor. Ningu&eacute;m disfar&ccedil;a os seus reais pensamentos: &ldquo;Esse sujeito a&iacute; [no caso eu] se fosse bom mesmo seria juiz, promotor, defensor, advogado, procurador&rdquo;... Eis aqui mais uma raz&atilde;o do entrincheiramento: ser professor do direito &eacute; desvalorizado pelos seus pr&oacute;prios pares. E digo mais. Mesmo dentro da Academia o of&iacute;cio docente &eacute; compreendido como menos refinado ou menos importante do que o de pesquisador. Essa desvaloriza&ccedil;&atilde;o dificulta o professor pensar sobre seu pr&oacute;prio of&iacute;cio, j&aacute; que isso n&atilde;o parece ser mesmo muito relevante. <br /> <br /> Recentemente fui procurado por uma institui&ccedil;&atilde;o que pretende abrir um novo curso de direito. A proposta &eacute;, em certa medida, radicalmente distinta de tudo o que conhe&ccedil;o. Ao questionar a institui&ccedil;&atilde;o: &ldquo;Quem dar&aacute; essas aulas?&rdquo;. Ap&oacute;s um suspiro, seguiu-se a reposta: &ldquo;Esse ser&aacute; mesmo um problema&rdquo;. A perman&ecirc;ncia do formalismo no ensino do direito est&aacute; arraigada a um complexo sistema socioecon&ocirc;mico e de poder que domina a entrada dos quadros nas Escolas, nas Faculdades e Universidades. O entrincheiramento n&atilde;o me parece ser metodol&oacute;gico, mas sim elitista. <br /> <br /> <i><b>Thiago Acca</b></i> &eacute; doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Alphaville e da FGV Direito SP. <br />