Corrupção, poesia e justiça

16 de janeiro de 2020 às 08:32

Ricardo Viveiros
No momento em que, no Congresso Nacional, s&atilde;o debatidos temas relacionados &agrave; corrup&ccedil;&atilde;o e a outros crimes, recordo-me que h&aacute; exatos 26 anos acontecia o que se denominou &ldquo;CPI do Or&ccedil;amento&rdquo;. Nessa comiss&atilde;o especial eram analisados 84 disquetes, ent&atilde;o apreendidos na construtora Norberto Odebrecht, quando se encontrou uma cr&ocirc;nica dedicada a quem n&atilde;o tem namorado, redigida em um estilo muito peculiar, sem identifica&ccedil;&atilde;o da autoria. <br /> <br /> Em meio &agrave; complexa realidade envolvendo pol&iacute;ticos supostamente corruptos, surgiu o texto po&eacute;tico de inquestion&aacute;vel qualidade. O poder paralelo, que j&aacute; &agrave;quela &eacute;poca causava danos ao Pa&iacute;s, mostrava um lado cultural inesperado. Mesmo sob o risco de ser punido por vazar informa&ccedil;&otilde;es confidenciais, o t&eacute;cnico da Prodasen que descobriu o misterioso e indecifr&aacute;vel texto em meio &agrave; apura&ccedil;&atilde;o dos fatos, emocionado pela beleza e sabedoria contidas na obra, tirou c&oacute;pias e as distribuiu no Congresso. <br /> <br /> Entretanto, &agrave; luz dos objetivos da CPI, seria alguma mensagem em c&oacute;digo cifrado? Revelaria novos envolvidos nos crimes investigados? Como um poss&iacute;vel corruptor poderia escrever com tanta sensibilidade e perfei&ccedil;&atilde;o? Ningu&eacute;m se interessou em saber as respostas. Todos buscavam os valores das propinas e os nomes dos parlamentares que as teriam recebido. Literatura n&atilde;o era o foco. <br /> <br /> At&eacute; porque, observando o conte&uacute;do, se tratava de um rom&acirc;ntico ensinamento. O texto mostrava que n&atilde;o ter namorado era &ldquo;tirar f&eacute;rias do melhor de si&rdquo;, e a conclus&atilde;o final recomendava uma dose de insanidade para evitar a solid&atilde;o: &ldquo;Enlou-cres&ccedil;a&rdquo;. S&oacute; n&atilde;o considerava o extremo em apelar para a condi&ccedil;&atilde;o de mal acompanhado, como no caso dos investigados e suas rela&ccedil;&otilde;es com a empresa apontada como corruptora. <br /> <br /> Entre in&uacute;meros desvios de recursos p&uacute;blicos feitos pelos deputados e senadores que ficaram conhecidos como os &ldquo;An&otilde;es do Or&ccedil;amento&rdquo;, surgia algo metaf&oacute;rico e que, por ser at&iacute;pico, gerou piadas entre os parlamentares. O senador ga&uacute;cho Jos&eacute; Paulo Bisol (PT), ironizou: &ldquo;&Eacute;... Os brutos tamb&eacute;m amam&rdquo;. J&aacute; o deputado baiano Benito Gama (PFL), arriscou a rima: &ldquo;A CPI do Or&ccedil;amento mais parece um tormento. Tem de tudo um pouco, e o pior &eacute; ouvir lamento&rdquo;. <br /> <br /> O deputado Gedel Vieira Lima (PMDB-BA), um dos envolvidos nas den&uacute;ncias, era dos que mais reclamava da acusa&ccedil;&atilde;o junto aos membros da CPI. E isso, no esp&iacute;rito do texto encontrado, gerava mais versos. A ele atribui-se a frase dita a um dos investigadores: &ldquo;Se voc&ecirc; &eacute; vidente, ver&aacute; que sou inocente!&rdquo;. Pelo visto, n&atilde;o era. Em um apartamento que lhe foi emprestado por um amigo, na cidade de Salvador (BA), 24 anos depois, a Pol&iacute;cia Federal encontrou nove malas e sete caixas de papel&atilde;o que somavam 51 milh&otilde;es de reais e 2,688 milh&otilde;es de d&oacute;lares. <br /> <br /> O que se descobriu, afinal, al&eacute;m de que h&aacute; quase tr&ecirc;s d&eacute;cadas j&aacute; havia corrup&ccedil;&atilde;o end&ecirc;mica envolvendo empreiteiras de obras p&uacute;blicas, parlamentares e gestores p&uacute;blicos? Que isso poderia ter sido evitado desde ent&atilde;o, sem causar tanto preju&iacute;zo ao Brasil? N&atilde;o, o problema seguiu acontecendo e se agravando. A novidade ficou por conta do texto po&eacute;tico ser apenas trabalho universit&aacute;rio da filha de um dos diretores da Odebrecht que, por acaso, misturou-se com os demais disquetes do que se revelou ser o Setor de Opera&ccedil;&otilde;es Estruturadas (entenda-se &ldquo;Propinoduto&rdquo;) da construtora. <br /> <br /> Outra descoberta foi que a imaginada mensagem codificada que identificaria mais um poss&iacute;vel envolvido na roubalheira, era uma cr&ocirc;nica de Carlos Drummond de Andrade, &ldquo;Namorado: ter ou n&atilde;o, &eacute; uma quest&atilde;o&rdquo;. O poeta maior da literatura brasileira, morto em 1987, n&atilde;o viu seu texto arrolado no contexto da CPI. Mas, com certeza, como todos n&oacute;s, teria ficado sem entender o porqu&ecirc; da demora para que as pessoas envolvidas come&ccedil;assem a ser denunciadas, investigadas, processadas, condenadas e, finalmente, punidas. Resta a m&aacute;xima popular: &ldquo;Antes tarde do que nunca&rdquo;, como lembraria o pr&oacute;prio Drummond, sempre t&atilde;o sens&iacute;vel ao que vive e sofre a sociedade. <br /> <br /> Por <b><i>Ricardo Viveiros</i></b>, jornalista e escritor, &eacute; autor, dentre outros livros, de &ldquo;A vila que descobriu o Brasil&rdquo;, &ldquo;Doces beijos amargos&rdquo; e &ldquo;Justi&ccedil;a seja feita&rdquo;.