Futebol: Torcida, paixão e polêmicas!

29 de janeiro de 2020 às 11:25

Leonardo Pantaleão
Ah....o futebol..... quanta magia lhe envolve... quantos cora&ccedil;&otilde;es acelerados e enternecidos com o &lsquo;simples&rsquo; rolar de uma bola... Ah...o futebol... capaz de despertar as mais inusitadas e emocionadas rea&ccedil;&otilde;es... Ah ...o futebol... dotado de uma capacidade &iacute;mpar de alterar o sentido do voc&aacute;bulo &lsquo;paix&atilde;o&rsquo;, conferindo-lhe eternidade, contrariamente ao de efemeridade trazido pelos estudiosos do vern&aacute;culo. Ah...o futebol.... <br /> <br /> No Brasil, registros oficiais indicam que come&ccedil;ou a ser praticado em 1894, no Estado de S&atilde;o Paulo, introduzido por Charles Miller que, ao retornar de um per&iacute;odo de estudos na Inglaterra, aqui apresentou as primeiras bolas, uniformes e chuteiras. Era o pontap&eacute; inicial .... <br /> <br /> Em poucos anos, disseminou-se a magia e o encantamento pela nobre arte. Popularizaram-se express&otilde;es sempre cercadas de afetividade, como a exig&ecirc;ncia dos torcedores de que seus representantes colocassem o &lsquo;cora&ccedil;&atilde;o na ponta da chuteira&rsquo;. Esse &eacute; o ambiente do futebol! <br /> <br /> Em apertadas palavras, futebol &eacute; paix&atilde;o e, portanto, irracional! <br /> <br /> Tradicionalizou-se, nos &uacute;ltimos tempos, nos seus campos, que a torcida da equipe local &lsquo;homenageasse&rsquo;, em determinados momentos, o arqueiro da agremia&ccedil;&atilde;o advers&aacute;ria, entoando, sob forte emposta&ccedil;&atilde;o de voz, um r&iacute;tmico grito: &ldquo;&Ocirc;&Ocirc;&Ocirc;&Ocirc; BICHA&rdquo;! <br /> <br /> Eis a constata&ccedil;&atilde;o da absoluta irracionalidade que permeia o futebol! Esportistas reconhecidamente galanteadores, tamb&eacute;m n&atilde;o est&atilde;o imunes a tal adjetiva&ccedil;&atilde;o... Eis a voz do cora&ccedil;&atilde;o deslumbrado de milhares de torcedores, que com o prop&oacute;sito de &lsquo;jogar&rsquo; com o time, ingressam simbolicamente na cancha, como se fossem, verdadeiramente, o decimo segundo jogador da equipe! <br /> <br /> Recentemente, em uma partida da Copa S&atilde;o Paulo, por conta de brados similares direcionados a um determinado atleta, paralisou-se a partida por mais de um momento, inclusive, com o acionamento da Pol&iacute;cia Militar, para que os gritos fossem contidos. <br /> <br /> Na s&uacute;mula do jogo, a &lsquo;senten&ccedil;a&rsquo; do &aacute;rbitro: &ldquo;...Aos cinco minutos do segundo tempo paralisei a partida devido a torcida do Gr&ecirc;mio Osasco Audax E. C. entoar gritos homof&oacute;bicos &quot;O BICHA&quot;, quando o goleiro da equipe do Sport Club do Recife cobrava o tiro de meta...&rdquo; <br /> <br /> Para ele (&aacute;rbitro), caracterizada estava a repudiante pr&aacute;tica homof&oacute;bica. Ser&aacute;? A reflex&atilde;o sobre a tem&aacute;tica se faz imperiosa. <br /> <br /> A Carta Pol&iacute;tica de 1988, em seu pre&acirc;mbulo, assevera que: &ldquo;N&oacute;s, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democr&aacute;tico, destinado a assegurar o exerc&iacute;cio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a seguran&ccedil;a, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justi&ccedil;a como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)&rdquo; <br /> <br /> Nesta seara, a nossa Lei Maior dedicou-se a abordar o tema em dispositivos espec&iacute;ficos[1], sempre resguardando o princ&iacute;pio da dignidade humana. <br /> <br /> Em atendimento aos ditames constitucionais, a Lei no. 7.716/89, que disp&otilde;e sobre os crimes resultantes de preconceito, em que pese o car&aacute;ter geral dos dispositivos magnos da cidadania, n&atilde;o alcan&ccedil;ou todas as suas formas, restringindo-as a: ra&ccedil;a, cor, etnia, religi&atilde;o e proced&ecirc;ncia nacional. <br /> <br /> Em junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, em face da omiss&atilde;o legislativa, aprovou a criminaliza&ccedil;&atilde;o da homofobia, incluindo-a no bojo da Lei de Racismo (Lei no. 7.716/89). Na ocasi&atilde;o, dez dos onze Ministros reconheceram haver uma demora inconstitucional do Poder Legislativo em tratar do tema, raz&atilde;o pela qual se justificava a interven&ccedil;&atilde;o daquela Corte de Justi&ccedil;a. <br /> <br /> Assim, atualmente, esta modalidade de discrimina&ccedil;&atilde;o ganhou contornos de infra&ccedil;&atilde;o penal e, sob esse aspecto, deve ser aqui analisada. <br /> <br /> O escopo da aludida lei &eacute;, inequivocamente, punir delitos resultantes de discrimina&ccedil;&atilde;o (segrega&ccedil;&atilde;o) -- a ideologia preconceituosa implementada na pr&aacute;tica; ou preconceito -- aspectos ideol&oacute;gicos -- mau ju&iacute;zo de valor de pessoas em raz&atilde;o de alguma diferen&ccedil;a que ela possua em rela&ccedil;&atilde;o a outras). <br /> <br /> A conduta do agente, portanto, para que haja a necess&aacute;ria subsun&ccedil;&atilde;o ao tipo penal incriminador, deve estar revestida de &acirc;nimo espec&iacute;fico, ou seja, o efetivo intuito de subjugar algu&eacute;m em raz&atilde;o de determinadas caracter&iacute;sticas pessoais ou, at&eacute; mesmo, segreg&aacute;-la de um contexto, pela mesma motiva&ccedil;&atilde;o. <br /> <br /> A incompatibilidade desta premissa com os gritos ecoados nos est&aacute;dios futebol&iacute;sticos &eacute; patente. A evid&ecirc;ncia do agir necessariamente orientado para um fim, tornou inevit&aacute;vel a observa&ccedil;&atilde;o de que o tipo penal deve espelhar esta finalidade, dando margem &agrave; consecu&ccedil;&atilde;o de seu conte&uacute;do subjetivo, expressado de forma geral pelo dolo. <br /> <br /> O que se tem, dessa forma, &eacute; que n&atilde;o existem a&ccedil;&otilde;es cegas, que por casualidade produzam resultados lesivos, mas, imprescindivelmente, a&ccedil;&otilde;es orientadas para determinado objetivo, e esta determina&ccedil;&atilde;o final&iacute;stica do agir deve, necessariamente, ser analisada para a realiza&ccedil;&atilde;o do ju&iacute;zo de tipicidade penal. <br /> <br /> N&atilde;o se pode confundir a inten&ccedil;&atilde;o de provoca&ccedil;&atilde;o, de desconcentra&ccedil;&atilde;o do atleta da outra agremia&ccedil;&atilde;o, com aquela destinada a ofend&ecirc;-lo no profundo de sua alma ou nas suas intoc&aacute;veis honras subjetiva ou objetiva. O animus jocandi (a fim de &lsquo;brincar&rsquo;) n&atilde;o &eacute; capaz de satisfazer as exig&ecirc;ncias do direito penal, na justa medida em que afasta a seriedade necess&aacute;ria ao perfeito enquadramento na ess&ecirc;ncia da legisla&ccedil;&atilde;o repressiva. <br /> <br /> A criminaliza&ccedil;&atilde;o destes atos espont&acirc;neos, no cen&aacute;rio futebol&iacute;stico, seria o mesmo que se almejar criminalizar a paix&atilde;o. A paix&atilde;o &eacute; intensa, envolvente, irrefre&aacute;vel, entusiasmada, incontrol&aacute;vel, irracional; ou seja, um delicioso jeito de existir! <br /> <br /> Por <i><b>Leonardo Pantale&atilde;o</b></i> - Advogado e professor de Direito Penal e Processo Penal.<br />