O RESPEITO À LITURGIA

12 de fevereiro de 2020 às 17:28

Gaudêncio Torquato
Cada governante com suas manias. Idi Amin, ditador de Uganda, dizia que conversava com Deus. Um jornalista jogou a pergunta: &ldquo;quando&rdquo;? Ele: todas as vezes que se faz necess&aacute;rio. Um contador de lorotas. A hist&oacute;ria registra casos de governantes que se colocavam em p&eacute; de igualdade com Deus. Em Gana, os ganenses comparavam o ditador Nkrumah a Conf&uacute;cio, Maom&eacute;, S&atilde;o Francisco de Assis e Napole&atilde;o. Ele &eacute; &ldquo;imortal, nosso messias&rdquo;. Franco proclamava-se &ldquo;Caudilho da Espanha pela gra&ccedil;a de Deus&rdquo;. <br /> <br /> Giscard D&rsquo;Estaing, chegando &agrave; presid&ecirc;ncia da Fran&ccedil;a, inventou maneiras de popularizar sua imagem. Tocava acordeon em pra&ccedil;as p&uacute;blicas, andava a p&eacute; por Paris, ia ao teatro com a fam&iacute;lia, tomava caf&eacute; com varredores de rua, desfilava com seu c&atilde;o amestrado. Um adepto do dandismo, fen&ocirc;meno que explica pessoas que t&ecirc;m o prazer de espantar. Foi criticado por exagerar a dessacraliza&ccedil;&atilde;o do poder.<br /> <br /> Nisso, inspirava-se em Luis XIV, o rei que se exibia em Versailles montado em seu cavalo crivado de diamantes. Dizia ele: &ldquo;os povos gostam de espet&aacute;culo, com o qual dominamos seu esp&iacute;rito e seu cora&ccedil;&atilde;o&rdquo;.<br /> <br /> J&aacute; outros se levam mais a s&eacute;rio. Convidado numa festa a tocar c&iacute;tara, Tem&iacute;stocles, o ateniense, altivo e poderoso, respondeu: &ldquo;n&atilde;o sei tocar m&uacute;sica, mas posso fazer de uma pequena vila uma grande cidade&rdquo;. De Gaulle, eis um general que impunha respeito. N&atilde;o precisava se enfeitar nem ado&ccedil;ar as palavras para impor autoridade. John Kennedy brilhava na frente de uma c&acirc;mera de TV. Nixon, por sua vez, era uma l&aacute;stima.<br /> <br /> O fato &eacute; que os governantes, cada um a seu modo, se esfor&ccedil;am para dar brilho &agrave; imagem. E, frequentemente, trocam a sem&acirc;ntica pela est&eacute;tica, o conte&uacute;do pela forma. Quando o exagero sobe a montanha, a imagem se esfarela. O povo capta bem a fosforesc&ecirc;ncia artificial de certos mandat&aacute;rios. Por isso, alguns sobem, outros descem.<br /> <br /> Vejamos a quest&atilde;o da identidade - (do idem, latim, semelhante), abrangendo a hist&oacute;ria, o pensamento, a &iacute;ndole, as a&ccedil;&otilde;es de um governante. Quando ele monta um circo ao seu redor, e esse circo passa a oferecer um espet&aacute;culo cotidiano, acaba contribuindo para tirar a for&ccedil;a do conte&uacute;do. Quando substitui a coisa maior pela menor, desmonta a liturgia do poder. Liturgia necess&aacute;ria para resguardar credibilidade. A banaliza&ccedil;&atilde;o de situa&ccedil;&otilde;es arrogantes, com cargas de desleixo, embrulhadas em vers&otilde;es falsas, &eacute; um golpe na liturgia das institui&ccedil;&otilde;es e de seus ocupantes.<br /> <br /> Um presidente, um magistrado, mesmo um representante da esfera parlamentar, autoridades de quaisquer &aacute;reas se vestem com um manto lit&uacute;rgico. Sob o qual se abrigam os valores do respeito, da ordem, da credibilidade, da disciplina, da norma imposta pelo cargo. Quando um destes figurantes maltrata uma liturgia criada pelo dever e princ&iacute;pios que regulam os comportamentos da autoridade, est&aacute; ele rebaixando o seu conceito.<br /> <br /> Deve-se respeitar as pessoas como elas s&atilde;o. Mas &eacute; s&aacute;bio que todos procurem preservar a ordem que se estabelece para cumprimento retil&iacute;neo das tarefas que cabem a quem se investe de poder. &Eacute; respeit&aacute;vel a figura que desce do altar para conversar com as pessoas nas ruas, nas pra&ccedil;as, nos ambientes de trabalho. Mas h&aacute; uma linha t&ecirc;nue que deve ser observada, a linha que separa a responsabilidade da demagogia, a seriedade do populismo.<br /> <br /> Pequeno exemplo. O Brasil pol&iacute;tico de 2020 foi aberto com dois atos que integram a agenda nacional: a abertura do ano parlamentar, com sess&atilde;o conjunta do Senado e C&acirc;mara; e a abertura do Ano Judici&aacute;rio, com ato solene no Supremo Tribunal Federal. Esses eventos sempre contaram com a presen&ccedil;a do mandat&aacute;rio-mor da Na&ccedil;&atilde;o, o presidente da Rep&uacute;blica. Que n&atilde;o compareceu, decidindo priorizar a coloca&ccedil;&atilde;o de uma pedra em terreno para constru&ccedil;&atilde;o de um col&eacute;gio militar em S&atilde;o Paulo.<br /> <br /> Um desprest&iacute;gio para as esferas pol&iacute;tica e judici&aacute;ria. Possivelmente, os pr&oacute;prios militares, que cumprem rigorosamente a liturgia da caserna, tenham desaprovado, em seu &iacute;ntimo, aquele gesto presidencial.<br /> <br /> O general Tem&iacute;stocles, o general De Gaulle e tantos outros grandes personagens deram exemplos de grandeza e autoridade. Mulheres tamb&eacute;m. Margareth Tatcher foi zelosa governante. Imbu&iacute;da de princ&iacute;pios. Tinha um repert&oacute;rio cheio de grandes ideias. At&eacute; o Brasil mereceu dela esta reprimenda: &ldquo;Parece-me bem claro que o Brasil n&atilde;o teve ainda um bom governo, capaz de atuar com base em princ&iacute;pios, na defesa da liberdade, sob o imp&eacute;rio da lei e com uma administra&ccedil;&atilde;o profissional.&rdquo;<br /> &nbsp;<br /> <b><i><img src="/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" hspace="3" align="left" alt="" /><br /> <br /> Gaud&ecirc;ncio Torquato</i></b>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o Twitter@gaudtorquato