DEMÓCRITOS E HERÁCLITOS

06 de março de 2020 às 10:57

Gaudêncio Torquato
Dem&oacute;crito e Her&aacute;clito, dois grandes fil&oacute;sofos, tinham concep&ccedil;&otilde;es diferentes sobre a condi&ccedil;&atilde;o humana. O primeiro ridicularizava a vida e o homem. S&oacute; aparecia em p&uacute;blico com um ar arrogante e zombeteiro; o segundo, ao contr&aacute;rio, tinha compaix&atilde;o pelo ser humano, demonstrando solidariedade com seu semblante sempre entristecido e os olhos marejados de l&aacute;grimas.<br /> <br /> Nos &uacute;ltimos tempos, a &iacute;ndole de Dem&oacute;crito tem povoado os espa&ccedil;os nacionais, com uma verve cheia de mal&iacute;cias em defesa de posi&ccedil;&otilde;es extremadas, e que resulta em um processo de flechadas rec&iacute;procas entre grupos da sociedade. J&aacute; os valores humanos s&atilde;o desprezados ou colocados em segundo plano. O clima de emboscada permanente que acirra os &acirc;nimos vai cada vez mais aumentando a dist&acirc;ncia entre o territ&oacute;rio, o Pa&iacute;s e a Na&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> Expliquemos. O territ&oacute;rio &eacute; o porte continental que abriga nossas belezas e riquezas naturais. O territ&oacute;rio n&atilde;o tem alma, &eacute; um diamante bruto. Lapidado por leis, c&oacute;digos, proces&not;sos, habitado por pessoas, e governado por representantes do poder popular, adquire o status de Pa&iacute;s. <br /> <br /> Mas a Na&ccedil;&atilde;o continua ainda muito distante. Pois a Na&ccedil;&atilde;o &eacute; um ente com alma, &eacute; o espa-&ccedil;o dos direitos, deveres e seus atributos: o civismo, a solidariedade, a justi&ccedil;a, o desenvolvimento, a liberdade, a ordem, a democracia, a autoridade, a cultura, a soberania e a cidadania. <br /> <br /> E o que vemos na paisagem? Milh&otilde;es de brasileiros, em seus espa&ccedil;os, mais se assemelham a incrusta&not;&ccedil;&otilde;es de conchas em rochedos brutos, assolados por tempestades e fu&not;rac&otilde;es. &Eacute; o desemprego em massa; s&atilde;o as doen&ccedil;as, algumas de s&eacute;culos passados, que nos assolam, e outras, de nomes estranhos que aqui aportam trazendo medo; &eacute; a autoridade m&aacute;xima que convoca o povo a atirar pedras nas institui&ccedil;&otilde;es, incentivando a batalhas nas ruas; s&atilde;o as nossas For&ccedil;as Armadas, que se recolhem ao sil&ecirc;ncio em vez de proclamar sua cren&ccedil;a na ordem democr&aacute;tica; s&atilde;o xingamentos em cadeia contra meios de comunica&ccedil;&atilde;o e jornalistas, alguns recheados de baixo cal&atilde;o. <br /> <br /> A esperan&ccedil;a vira um pontinho aceso nos c&eacute;us. <br /> <br /> N&atilde;o por acaso, o clima de faroeste transpira viol&ecirc;ncia, aqui e ali, com estranhas armas (empilhadeiras, por exemplo), e&nbsp; cowboys exibindo suas cartucheiras cheinhas de balas, alguns com o selo de milicianos pregados na testa. Onde j&aacute; se viu, gente de Deus, policiais fazendo motim? <br /> <br /> N&atilde;o por acaso, a poeira t&oacute;rrida do territ&oacute;rio vai obnubilando o desenho de civismo que habita a P&aacute;tria, esse sonho que teima em permanecer na consci&ecirc;ncia dos homens de bem.<br /> <br /> E assim o pa&iacute;s vai se locupletando de Dem&oacute;critos, apesar da imensa car&ecirc;ncia de Her&aacute;clitos.<br /> &nbsp; &nbsp;<br /> Quem ouviu, nos &uacute;ltimos tempos, um grito de &ldquo;Viva o Congres&not;so&rdquo;? Mas &eacute; ali que vicejam as condi&ccedil;&otilde;es para a grandeza da Na&ccedil;&atilde;o. Quem acha que os impostos e tributos est&atilde;o diminuindo? O que se ouve, com certa intensidade, &eacute; uma voz cavernosa que promete a ressurrei&ccedil;&atilde;o de malfadada CPMF. A obsoleta legisla&ccedil;&atilde;o trabalhista da era getulista at&eacute; foi mudada, mas h&aacute; guerreiros da maldade que teimam em quer&ecirc;-la de volta. <br /> <br /> Quem acredita que a viol&ecirc;ncia est&aacute; diminuindo? O Cear&aacute; at&eacute; parece um abatedouro de pessoas. Algu&eacute;m acha que professo&not;res e alunos est&atilde;o satisfeitos com as condi&ccedil;&otilde;es de ensino ou com a gest&atilde;o de um ministro que passa o tempo azucrinando quem n&atilde;o concorda com suas extravag&acirc;ncias? Que felizar&not;do consegue encontrar uma bandeira brasileira para adquirir antes da bandeira de qualquer grande time de futebol? Quem acha que o PIBF &ndash; Produto Interno Bruto da Felicidade &ndash; est&aacute; crescendo?<br /> <br /> O tom do mundo, escreveu Montesquieu em Meus Pensamentos, consiste muito em falar de bagatelas como se fossem coisas s&eacute;rias, e de coisas s&eacute;rias como se fossem bagatelas. Pois &eacute;, quantas autoridades n&atilde;o fazem essa invers&atilde;o, tentando amaciar o cotidiano com pitadas de riso, mesmo que a esta&ccedil;&atilde;o do ano seja repleta de dor e ang&uacute;stia? Tem muita gente debochando com coisas s&eacute;rias da pol&iacute;tica, inclusive gente estrelada. <br /> <br /> Ser&aacute; que o interesse comum, em nossas plagas, n&atilde;o passa de abstra&ccedil;&atilde;o?&nbsp; Que saudades dos tempos buc&oacute;licos, aqueles idos em que homens, simples em seus costumes e firmes nas cren&ccedil;as, cultivavam a solidariedade, as lem&not;bran&ccedil;as dos antepassados, o amor paternal, o amor filial, o respeito aos mais velhos, enfim, uma bagagem de vida descomplicada que proporcionava aos cida&not;d&atilde;os certa do&ccedil;ura de viver. Hoje, vivemos sob o signo da radicaliza&ccedil;&atilde;o, das amea&ccedil;as e do medo.<br /> &nbsp;<br /> <img src="/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Por <i><b>Gaud&ecirc;ncio Torquato</b></i>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o Twitter@gaudtorquato