O PÂNICO SE INSTALA

21 de março de 2020 às 12:20

Gaudêncio Torquato
A vida &eacute; um eterno recome&ccedil;o. Fosse escolher a lenda que mais se assemelha &agrave; sua vida, provavelmente o povo brasileiro colocaria a hist&oacute;ria do castigo de S&iacute;sifo entre as preferidas. S&iacute;sifo, que viveu vida solerte e audaciosa, conseguiu livrar-se da morte por duas vezes, sempre blefando. Rei de Corinto, n&atilde;o cumpria a palavra empenhada, at&eacute; que T&acirc;natos veio busc&aacute;-lo em definitivo. Como castigo, os deuses o condenaram impiedosamente a rolar montanha acima um grande bloco de pedra. Quase chegando ao cume, o bloco desaba montanha abaixo.<br /> <br /> A maldi&ccedil;&atilde;o de S&iacute;sifo &eacute; recome&ccedil;ar tudo de novo, tarefa que h&aacute; de durar eternamente.<br /> <br /> O povo se sente no estado de eterno recome&ccedil;o. Padece das previs&iacute;veis trag&eacute;dias provocadas por chuvas, com mortes que sobem no ranking das cat&aacute;strofes; angustia-se nas filas do INSS; v&ecirc; o dinheiro sumindo do bolso com a economia em recuo; e, agora, passa a temer com a foice da morte, que aparece aqui e ali escondida na forma de um v&iacute;rus, de nome coronav&iacute;rus, que n&atilde;o escolhe v&iacute;timas, atacando ricos e pobres. O mundo todo est&aacute; tomado de pavor.<br /> <br /> O p&acirc;nico que come&ccedil;a a se alastrar deflagra uma cadeia de eventos e situa&ccedil;&otilde;es inesperadas. O corpo social &eacute; ferido de todos os lados. Suspens&atilde;o de aulas, com efeitos s&eacute;rios sobre o cronograma da vida escolar; diminui&ccedil;&atilde;o de aglomerados e mobiliza&ccedil;&otilde;es de ruas e ambientes fechados, apesar de grupos com a s&iacute;ndrome do touro (arremetem com a cabe&ccedil;a e pensam com cora&ccedil;&atilde;o) n&atilde;o se incomodarem com isso; isolamento em casa ou em estabelecimentos hospitalares em quarentena, com semanas perdidas de trabalho; paralisa&ccedil;&atilde;o parcial de setores vitais da produ&ccedil;&atilde;o e dos servi&ccedil;os, perdas monumentais para a economia; d&eacute;b&acirc;cle das bolsas mundiais e da brasileira, que j&aacute; perdeu cerca de 1 trilh&atilde;o de reais com a desvaloriza&ccedil;&atilde;o das companhias ali presentes; falta adequada de respostas &agrave; pandemia, seja por insufici&ecirc;ncia das estruturas de sa&uacute;de governamentais e privadas, seja por aus&ecirc;ncia de planejamento para enfrentar a crise.<br /> <br /> Ao fundo desse panorama de desola&ccedil;&atilde;o, enxergam-se paisagens de destrui&ccedil;&atilde;o, pequenas e grandes cat&aacute;strofes: afundamento de barcos nos rios, quedas de barreiras nas rodovias e desabamento de casas; esc&acirc;ndalos envolvendo governantes, pol&iacute;ticos e empres&aacute;rios; amea&ccedil;a de novos impostos; tens&otilde;es acirradas entre os tr&ecirc;s Poderes; politicagem que se acentua em ano eleitoral, entre outros.<br /> <br /> Os efeitos s&atilde;o catastr&oacute;ficos, pois o sistema de vasos comunicantes acaba contaminando os poros da alma nacional, inviabilizando aquele esp&iacute;rito p&uacute;blico, fonte prim&aacute;ria do fervor p&aacute;trio, que Alexis de Tocqueville, h&aacute; quase 200 anos, constatou no cl&aacute;ssico A Democracia na Am&eacute;rica: &ldquo;existe um amor &agrave; p&aacute;tria que tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefin&iacute;vel que liga o cora&ccedil;&atilde;o do homem aos lugares onde o homem nasceu. Confunde-se esse amor instintivo com o gosto pelos costumes antigos, com o respeito aos mais velhos e a lembran&ccedil;a do passado; aqueles que o experimentam estimam o seu pa&iacute;s com o amor que se tem &agrave; casa paterna&rdquo;.<br /> <br /> Que amor &agrave; P&aacute;tria pode existir em esp&iacute;ritos tomados pelo pavor, pela viol&ecirc;ncia de tiros a esmo, mortes por balas perdidas, marginalidade comandada de dentro das pris&otilde;es? Que esp&iacute;rito p&uacute;blico pode vingar no seio das massas quando grupos polarizados teimam em querer dividir o pa&iacute;s em duas bandas, impulsionando os eixos da discrimina&ccedil;&atilde;o e bradando contra a liberdade de imprensa?<br /> <br /> Brasileiros motivados a emigrar para realizar o sonho de uma vida melhor na Am&eacute;rica do Norte voltam &agrave; terra,&nbsp; expulsos, algemados, estampando frustra&ccedil;&atilde;o. Emigrar foi para eles a op&ccedil;&atilde;o de milhares nesses tempos bicudos. Hoje, retornam &agrave; casa sob&nbsp; angustiante interroga&ccedil;&atilde;o: o que vou fazer?<br /> <br /> Onde e quando chegaremos ao andar da estabilidade? Por que a economia n&atilde;o melhora o nosso viver? Um fato: as margens embolsam seu dinheirinho no in&iacute;cio de cada m&ecirc;s e, ao final, contam migalhas. Para piorar, com esta crise nas bolsas, viver sob a ilus&atilde;o de ganhos inflacion&aacute;rios j&aacute; n&atilde;o mais faz a cabe&ccedil;a do poupador.<br /> <br /> A verdade &eacute; que o fator econ&ocirc;mico d&aacute; o tom das nossas vidas. Consequentemente, os servi&ccedil;os sociais ficam com poucos recursos. O processo de reformas nunca chega ao fim. Mudan&ccedil;as na pol&iacute;tica? Quem sabe? Poderemos ver mais um levante em outubro pr&oacute;ximo. Parecido com o que vimos em 2018.<br /> &nbsp;<br /> <img src="http://www.novoeste.com/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" alt="" width="60" hspace="3" height="80" align="left" /><br /> <br /> Por <b><i>Gaud&ecirc;ncio Torquato</i></b>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o - www.observatoriopolitico.org