Constituição Federal X CLT: Redução de salário por motivo de força maior

31 de março de 2020 às 17:09

Decio Daidone Júnior
A MP 927/2020 tem o cuidado de dispor logo na entrada de sua reda&ccedil;&atilde;o estar tratando de uma situa&ccedil;&atilde;o de calamidade p&uacute;blica em decorr&ecirc;ncia de um motivo de for&ccedil;a maior e passa a regrar condi&ccedil;&otilde;es emergenciais e transit&oacute;rias nas rela&ccedil;&otilde;es de emprego. <br /> <br /> A redu&ccedil;&atilde;o do sal&aacute;rio, no entanto, n&atilde;o foi tratada pela MP 927, mas, pelo que j&aacute; est&aacute; disposto na CLT, em seus artigos 501 e 503, ela seria poss&iacute;vel em situa&ccedil;&otilde;es de for&ccedil;a maior: <br /> <br /> <div style="margin-left: 40px;">&quot;Art. 501 - Entende-se como for&ccedil;a maior todo acontecimento inevit&aacute;vel, em rela&ccedil;&atilde;o &agrave; vontade do empregador, e para a realiza&ccedil;&atilde;o do qual este n&atilde;o concorreu, direta ou indiretamente.&quot; <br /> <br /> &quot;Art. 503 - &Eacute; l&iacute;cita, em caso de for&ccedil;a maior ou preju&iacute;zos devidamente comprovados, a redu&ccedil;&atilde;o geral dos sal&aacute;rios dos empregados da empresa, proporcionalmente aos sal&aacute;rios de cada um, n&atilde;o podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o sal&aacute;rio m&iacute;nimo da regi&atilde;o&quot;. </div> <br /> Ocorre que esse artigo 503, apesar de condicionar uma quest&atilde;o singular e incompar&aacute;vel que &eacute; a for&ccedil;a maior, para alguns, traz uma redu&ccedil;&atilde;o na sistem&aacute;tica top down e conflita com o dispositivo da Constitui&ccedil;&atilde;o Federal (artigo 7&ordm;, inciso VI), que somente permite a redu&ccedil;&atilde;o salarial se ela for combinada a dois fatores: (i) negocia&ccedil;&atilde;o coletiva e (ii) redu&ccedil;&atilde;o proporcional de jornada. <br /> <br /> Soma-se a isso, a reforma na CLT ocorrida em novembro de 2017 (Lei 13. 467), traz um terceiro elemento para compor a viabilidade de redu&ccedil;&atilde;o salarial, dispondo no par&aacute;grafo terceiro do artigo 611-A que a cl&aacute;usula que pactua a redu&ccedil;&atilde;o do sal&aacute;rio ou jornada deve prever a prote&ccedil;&atilde;o dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vig&ecirc;ncia do instrumento coletivo. <br /> <br /> Desta forma, em tese, para reduzir o sal&aacute;rio de forma conservadora, sem risco a ser contingenciado, a empresa precisa configurar esses tr&ecirc;s fatores: (i) negocia&ccedil;&atilde;o coletiva; (ii) redu&ccedil;&atilde;o proporcional de jornada e (iii) garantia provis&oacute;ria do emprego. <br /> <br /> Se a conjuga&ccedil;&atilde;o dos tr&ecirc;s fatores ao mesmo tempo n&atilde;o for poss&iacute;vel, o risco surge, mas, ao nosso entender, ainda assim, &eacute; vi&aacute;vel reduzir o sal&aacute;rio com base somente no disposto pelo artigo 503 da CLT, ponderando, principalmente, a dificuldade em se negociar coletivamente durante este momento de confinamento e executar o ato soberano da assembleia. <br /> <br /> Ao nosso sentir, essa interpreta&ccedil;&atilde;o, ainda que comporte um aumento no risco de interven&ccedil;&atilde;o do Estado, se sustenta por estarmos enfrentando uma situa&ccedil;&atilde;o socioecon&ocirc;mica jamais condicionada em nossa legisla&ccedil;&atilde;o, exceto pelo correspondente denominado &quot;motivo de fo&ccedil;a maior&quot; previsto no c&oacute;digo civil (artigo 393), bem como no artigo 503 da CLT acima citado, o qual n&atilde;o conflita com a CF em raz&atilde;o exata de sua pr&oacute;pria especificidade em regrar uma situa&ccedil;&atilde;o anormal como uma calamidade p&uacute;blica, enquanto o artigo 7&ordm;, inciso VI, da CF tratou de regrar os direitos sociais b&aacute;sicos para a conviv&ecirc;ncia e bem estar social latu sensu. <br /> <br /> A manuten&ccedil;&atilde;o do neg&oacute;cio empresarial deve ser avaliada ponderando a sa&uacute;de financeira e sua subsist&ecirc;ncia dentro do cen&aacute;rio real e catastr&oacute;fico em que a rela&ccedil;&atilde;o empregat&iacute;cia est&aacute; estabelecida. Uma condi&ccedil;&atilde;o sem precedentes, afetando a todos indistintamente, empregado e empregador, requer medidas radicais na mesma dose que ela se apresenta. <br /> <br /> A redu&ccedil;&atilde;o unilateral do sal&aacute;rio com o objetivo de preservar o bem maior do trabalhador, permitindo que a empresa mantenha vivo o seu posto de trabalho, prescinde da interpreta&ccedil;&atilde;o conservadora e estagnada dos int&eacute;rpretes jur&iacute;dicos e exige um protagonismo disruptivo para utilizar a legisla&ccedil;&atilde;o na forma que melhor atende os anseios prementes da sociedade. <br /> <br /> Nesse cen&aacute;rio, privilegiar o acordo individual, inclusive com a possibilidade de uma redu&ccedil;&atilde;o ainda maior para os empregados enquadrados no artigo 444 da CLT, denominados hipersuficientes, ou negociar um parcelamento para postergar o pagamento dos valores que est&atilde;o sendo descontados, s&atilde;o medidas legais e, provavelmente, necess&aacute;rias. <br /> <br /> Dentro dos direitos fundamentais do cidad&atilde;o est&aacute; o seu emprego, que antecede o seu sal&aacute;rio, al&eacute;m dos direitos sociais de manuten&ccedil;&atilde;o do seu lazer, do seu trabalho para dignific&aacute;-lo, como preconiza o artigo 6&ordm;, da CF. <br /> <br /> Reduzir o sal&aacute;rio, portanto, aplicando a previs&atilde;o expressa do artigo 503, da CLT, &eacute; utilizar-se da medida legal existente que se encaixa na realidade em que o pa&iacute;s est&aacute; passando, ainda que dolorida, preservando-se o neg&oacute;cio, que preserva o emprego, que preserva o sal&aacute;rio, que preserva a sobreviv&ecirc;ncia, direitos inerentes ao empregado e empregador. <br /> <br /> <img src="/uploads/image/artigos_decio-daidone-junior_advogado-professor.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Por <i><b>Decio Daidone J&uacute;nior</b></i> &eacute; advogado, professor, mestre em Direito e Processo do Trabalho pela Pontif&iacute;cia Universidade Cat&oacute;lica de S&atilde;o Paulo (PUC-SP) e palestrante <br />