Em 2003 a ONU estava sob ataque, agora é a OMS

28 de abril de 2020 às 17:39

Arnaldo Francisco Cardoso
Em 2003, a decis&atilde;o unilateral do governo dos Estados Unidos de invadir o Iraque e depor o governo de Saddam Hussein, desacatando decis&otilde;es contr&aacute;rias do Conselho de Seguran&ccedil;a da ONU, levou a principal organiza&ccedil;&atilde;o internacional intergovernamental a sua mais grave crise desde sua funda&ccedil;&atilde;o, no p&oacute;s Segunda Guerra Mundial. <br /> <br /> Naquela ocasi&atilde;o, sob o governo de George W. Bush os EUA anunciaram que invadiriam o Iraque &quot;com ou sem apoio das Na&ccedil;&otilde;es Unidas&quot;. Passados dezessete anos daquela cr&iacute;tica situa&ccedil;&atilde;o - com balan&ccedil;o bastante negativo dos resultados daquela guerra - nos encontramos em nova grave crise internacional, com uma pandemia que j&aacute; atingiu quase 3 milh&otilde;es de pessoas no mundo com 200 mil mortes e, com a Organiza&ccedil;&atilde;o Mundial da Sa&uacute;de (OMS) sob ataque e no centro de um debate sobre diplomacia e coopera&ccedil;&atilde;o internacionais. <br /> <br /> Na &uacute;ltima semana o presidente dos EUA Donald Trump anunciou a suspens&atilde;o de contribui&ccedil;&otilde;es anuais que o pa&iacute;s faz &agrave; OMS. Em 2019 as contribui&ccedil;&otilde;es dos EUA somaram US$ 400 milh&otilde;es, que representa cerca de 10% de todo o or&ccedil;amento da organiza&ccedil;&atilde;o. <br /> <br /> O governo Trump acusa a OMS de erros em avalia&ccedil;&otilde;es de cen&aacute;rios no in&iacute;cio da epidemia do covid-19 e de &quot;elogios indevidos&quot; a atua&ccedil;&atilde;o do governo chin&ecirc;s na crise. Os cr&iacute;ticos da decis&atilde;o de Trump acusam-no de chantagem pol&iacute;tica tentando trazer a OMS para sua pol&iacute;tica de confronto com a China, explorando contexto de grave crise de sa&uacute;de global para fins pol&iacute;tico-eleitorais, tendo em vista as elei&ccedil;&otilde;es presidenciais de novembro pr&oacute;ximo em que Trump buscar&aacute; sua reelei&ccedil;&atilde;o. <br /> <br /> Nesse contexto, no &uacute;ltimo dia 17 a Netflix lan&ccedil;ou o filme Sergio, que retrata os &uacute;ltimos anos da vida do brasileiro Sergio Vieira de Mello, diplomata de carreira da Organiza&ccedil;&atilde;o das Na&ccedil;&otilde;es Unidas que morreu em 19 de agosto de 2003, v&iacute;tima de um atentado suicida contra o centro de opera&ccedil;&otilde;es da ONU em Bagd&aacute;, onde desempenhava o cargo de Alto Comiss&aacute;rio para os Direitos Humanos da ONU. <br /> <br /> O atentado que levou &agrave; morte outras 21 pessoas e feriu dezenas de funcion&aacute;rios da organiza&ccedil;&atilde;o foi reivindicado por Abu Musab al-Zargawi, um dos l&iacute;deres da Al Qaeda, que via a ONU como agente dos des&iacute;gnios norte-americanos de domina&ccedil;&atilde;o do Iraque. <br /> <br /> Sergio Vieira de Mello sabia da import&acirc;ncia de dissociar a miss&atilde;o da ONU em Bagd&aacute; das a&ccedil;&otilde;es da coaliz&atilde;o liderada pelos EUA que ocupava o pa&iacute;s. Sergio apostava na for&ccedil;a do di&aacute;logo e na possibilidade de negocia&ccedil;&atilde;o entre os v&aacute;rios grupos pol&iacute;ticos, &eacute;tnicos e religiosos que compunham a sociedade iraquiana. <br /> <br /> Embora o filme n&atilde;o d&ecirc; conta de tratar das v&aacute;rias quest&otilde;es pol&iacute;ticas que compunham o contexto da atua&ccedil;&atilde;o da ONU no Iraque, convida &agrave; reflex&atilde;o sobre o papel da diplomacia e das organiza&ccedil;&otilde;es internacionais na promo&ccedil;&atilde;o da paz e do desenvolvimento das na&ccedil;&otilde;es, pondo mais uma vez em foco a atua&ccedil;&atilde;o e motiva&ccedil;&atilde;o das grandes pot&ecirc;ncias na constru&ccedil;&atilde;o e manuten&ccedil;&atilde;o da ordem mundial. <br /> <br /> O Brasil que desde sua Independ&ecirc;ncia em 1822 veio fazendo uso de uma pol&iacute;tica exterior como instrumento para seu desenvolvimento nacional e sua afirma&ccedil;&atilde;o internacional como Estado soberano, em 2003 negou apoio aos EUA para a invas&atilde;o do Iraque e reafirmou sua autonomia e seus valores de pa&iacute;s pac&iacute;fico e defensor dos princ&iacute;pios do multilateralismo. Sob o atual governo, o pa&iacute;s vem endossando acriticamente posi&ccedil;&otilde;es do governo Trump na arena internacional, como os recentes ataques a OMS e confronto com orienta&ccedil;&otilde;es t&eacute;cnicas para o enfrentamento da pandemia de coronav&iacute;rus, provocando perplexidade na comunidade internacional que, ao longo do tempo, acostumou-se a reconhecer na a&ccedil;&atilde;o externa brasileira, o predom&iacute;nio da qualidade de um corpo diplom&aacute;tico experiente e, na grande maioria das vezes, coerente e respons&aacute;vel em seus posicionamentos. <br /> <br /> Perto do anivers&aacute;rio de 200 anos de sua independ&ecirc;ncia, hoje o Br asil est&aacute; sendo visto pelo mundo como integrante de um peculiar grupo de pa&iacute;ses como a Bielor&uacute;ssia de Alexander Lukashenko, oTurcomenist&atilde;o de Gurbanguly Berdymukhamedov, e a Nicar&aacute;gua de Daniel Ortega, apelidado pelo cientista pol&iacute;tico Oliver Stunkel de &quot;Alian&ccedil;a do Avestruz&quot; e, ironicamente, chamado por outros de &quot;Eixo do Mal&quot;, termo cunhado pelo ex-presidente Bush ao se referir em 2003 a pa&iacute;ses que representavam amea&ccedil;a &agrave; ordem mundial e deveriam ser combatidos. <br /> <br /> A vida e a carreira de Sergio foram encerradas sob os escombros do pr&eacute;dio em que a equipe de profissionais da ONU trabalhava, deixando um amargo sabor de derrota para a diplomacia internacional. O que se viu depois no Iraque foi mais viol&ecirc;ncia e opress&atilde;o al&eacute;m da forma&ccedil;&atilde;o de novos grupos extremistas como o Estado Isl&acirc;mico (ISIS) e a expans&atilde;o de a&ccedil;&otilde;es violentas pelo mundo. <br /> <br /> Como em outros momentos cr&iacute;ticos vividos pelas na&ccedil;&otilde;es no s&eacute;culo XX, apreensivos hoje nos indagamos sobre que valores se far&atilde;o mais efetivos na conforma&ccedil;&atilde;o do mundo que teremos pela frente. <br /> <br /> Por <i><b>Arnaldo Francisco Cardoso</b></i> &eacute; professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie - Alphaville.