O INVERNO DE NOSSA DESESPERANÇA

20 de maio de 2020 às 20:15

Gaudêncio Torquato
O t&iacute;tulo acima n&atilde;o &eacute; meu. &Eacute; do cl&aacute;ssico livro de John Steinbeck, publicado em 1961, um ano antes de ele receber o Pr&ecirc;mio Nobel de Literatura. Que, por sua vez, puxou a express&atilde;o da primeira fase da pe&ccedil;a Ricardo III, de Shakespeare. Em sua obra, o magistral escritor norte-americano descreve e interpreta o mundo de um homem atormentado pelos dilemas impostos pelo dinheiro e pela moral, o protagonista Ethan Hawley, empregado de uma mercearia, casado, dois filhos, convivendo em uma comunidade de baleeiros, e atormentado pela ideia de melhorar sua vida e a da fam&iacute;lia. At&eacute; onde v&atilde;o os escr&uacute;pulos e a vida digna e honesta quando se trata de conseguir dinheiro? Um ser humano pode suportar a press&atilde;o de seu meio social sem romper com a &eacute;tica da dec&ecirc;ncia?<br /> <br /> A l&oacute;gica da pec&uacute;nia &eacute; pontuada em tom de desencanto, a traduzir o dilema entre seguir a trilha da ordem moral ou buscar o conforto material para si e os seus. O tema cai bem nesse momento em que o planeta mergulha em uma cat&aacute;strofe que j&aacute; &eacute; considerada a maior dos &uacute;ltimos cem anos. Vive-se um momento em que os valores que permeiam modos e costumes da vida contempor&acirc;nea s&atilde;o todos submetidos ao confession&aacute;rio de nossas consci&ecirc;ncias.<br /> <br /> Afinal, t&ecirc;m sentido a competi&ccedil;&atilde;o desvairada entre as grandes Na&ccedil;&otilde;es, cada qual lutando vorazmente para liderar o ranking dos bens materiais, quando nenhuma delas, com seus arsenais de guerra, consegue vencer um bichinho microsc&oacute;pico, de nome Covid-19? Que adianta angariar grandeza se o poder estratosf&eacute;rico por ela propiciado n&atilde;o consegue sustar a corrente de milh&otilde;es de pessoas infectadas e dar um paradeiro aos milhares de mortos que enchem os cemit&eacute;rios? E o que dizer da pol&iacute;tica e de seus conjuntos que disputam assentos nos espa&ccedil;os dos Poderes?<br /> <br /> Quest&otilde;es como essas batem em nossa mente nesse tormentoso outono, a prenunciar um inverno tomado pela desesperan&ccedil;a e provavelmente pleno de interroga&ccedil;&otilde;es. A t&atilde;o aguardada vacina est&aacute; chegando ou demorar&aacute; um ano, dois e at&eacute; cinco como se l&ecirc; na m&iacute;dia? O arsenal cient&iacute;fico das Na&ccedil;&otilde;es n&atilde;o consegue ter resposta convincente? Quanta fragilidade em um mundo dominado por aparatos de poder.<br /> <br /> Ante uma paisagem deserta de respostas positivas, fenecem as esperan&ccedil;as. A ang&uacute;stia enche os cora&ccedil;&otilde;es de amargura quando nos deparamos com estat&iacute;sticas de mortos, valas abertas nos cemit&eacute;rios, pessoas portando m&aacute;scaras nas ruas, flagrantes de um jeito esquisito de viver, coisa sui-generis para as tr&ecirc;s gera&ccedil;&otilde;es. Mais uma imagem desenhada em nossas cabe&ccedil;as: a de um portentoso transatl&acirc;ntico que perdeu o comando no meio da borrasca, tentando se equilibrar nas ondas do mar revolto.<br /> <br /> Por nossas &aacute;guas, a sensa&ccedil;&atilde;o &eacute; da falta de rumos. Nossa b&uacute;ssola perdeu o norte. Na &aacute;rea sanit&aacute;ria, o desastre ocorre todos os dias, com falta de equipamentos para atender as filas gigantescas de contaminados; as UTIs est&atilde;o esgotadas; os her&oacute;is do cotidiano &ndash; m&eacute;dicos e profissionais de enfermagem &ndash; confessam n&atilde;o dar conta da multiplicada demanda.<br /> <br /> Na frente da economia, o pandem&ocirc;nio se instala, enquanto o paradoxo emerge com for&ccedil;a. Desde o final dos anos 80, com a d&eacute;b&acirc;cle do comunismo liderado pela URSS, alinhou-se a r&eacute;gua econ&ocirc;mica do planeta pelo tra&ccedil;ado do liberalismo, com as li&ccedil;&otilde;es de Friedrich Hayek (economista e fil&oacute;sofo austr&iacute;aco, depois naturalizado brit&acirc;nico) e de Milton Friedman. Eles pregam o Estado m&iacute;nimo, permitindo maior mobilidade econ&ocirc;mica, sem centraliza&ccedil;&atilde;o excessiva de decis&otilde;es. Estado que zelaria pelo bom funcionamento do mercado, na esteira de leis de prote&ccedil;&atilde;o &agrave; iniciativa privada. O monetarismo se desenvolve com for&ccedil;a a partir da Universidade de Chicago, onde nosso atual guru da economia, Paulo Guedes, fez seus estudos.<br /> <br /> E quando pens&aacute;vamos ter um governo pautado nessa r&eacute;gua, com a promessa de privatizar cerca de 600 bra&ccedil;os do Estado (criou-se at&eacute; uma Secretaria de Desestatiza&ccedil;&atilde;o), eis que estamos na imin&ecirc;ncia de al&ccedil;ar ao altar da economia John Maynard Keynes, o economista brit&acirc;nico (1883-1946), que pontuou sobre a necessidade de forte interven&ccedil;&atilde;o econ&ocirc;mica do Estado com o objetivo de garantir pleno emprego e controle da infla&ccedil;&atilde;o. Nessa dire&ccedil;&atilde;o, tateia um designado plano Pr&oacute;-Brasil. Qual ser&aacute; o porte do Estado brasileiro, sob mando de um ex-capit&atilde;o do Ex&eacute;rcito e cercado de generais?<br /> <br /> Afinal, onde estamos, para onde vamos? &Agrave; nossa frente, o risco de queda de 5% do PIB para este ano, com aumento desenfreado do desemprego. E h&aacute; quem diga que essa pandemia t&atilde;o cedo n&atilde;o desaparecer&aacute;.<br /> <br /> Da&iacute; nossa desesperan&ccedil;a. Tememos que o vento frio do inverno apague a chama bruxuleante de nossa lamparina.<br /> &nbsp;<br /> <img src="http://www.novoeste.com/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Por <b><i>Gaud&ecirc;ncio Torquato</i></b>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o Twitter@gaudtorquato - Acesse o blog <a href="http://www.observatoriodaeleicao.com/" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i>www.observatoriopolitico.org</i></u></span></a><br />