Mais de 40 mil mortos

15 de junho de 2020 às 18:22

Rodrigo Augusto Prando
H&aacute; muito tempo que dois n&uacute;meros sempre me chamaram a aten&ccedil;&atilde;o por sua expressividade e crueldade na sociedade brasileira: os homic&iacute;dios e os mortos em acidentes de tr&acirc;nsito. Seja como cidad&atilde;o ou como cientista social, estas mortes evit&aacute;veis sempre estiveram em meu horizonte de reflex&atilde;o e de indigna&ccedil;&atilde;o. <br /> <br /> Para termos ideia da dimens&atilde;o dos problemas em tela vejamos os dados referentes aos &uacute;ltimos tr&ecirc;s anos. Tivemos, assim, os seguintes n&uacute;meros de homic&iacute;dios no Brasil: 2017 (63.880), 2018 (57.341) e 2019 (41.635). Em rela&ccedil;&atilde;o &agrave;s mortes no tr&acirc;nsito, foram: 2017 (35.374), 2018 (32.655) e 2019 (41.635). A soma, portanto, de homic&iacute;dios e mortes no tr&acirc;nsito, nos anos aludidos &eacute; de 271.606 vidas interrompidas. Pode-se realizar um exerc&iacute;cio de verifica&ccedil;&atilde;o destes n&uacute;meros por regi&atilde;o do pa&iacute;s, por estados, por g&ecirc;nero, faixa et&aacute;ria, condi&ccedil;&atilde;o social, cor ou ra&ccedil;a entre outros. E, neste caso, veremos como a desigualdade de renda e oportunidades que, no Brasil, &eacute; estrutural atinge desigualmente brancos e negros, a ponto de um negro ter quase tr&ecirc;s vezes mais chances de ser assassinado do que um branco. &Agrave; guisa de exemplo, a Guerra do Iraque em nove anos vitimou 100.835 pessoas (106 mil iraquianos e 4 mil americanos). Caminhar no Iraque em guerra parecia ser mais seguro do que um passeio &agrave; noite em certas regi&otilde;es do Brasil. Temos, faz muito, uma guerra n&atilde;o declarada no bojo de nossa sociedade. <br /> <br /> Em 15/06/20, foram divulgados os dados referentes aos &oacute;bitos oriundos da pandemia, do Covid-19, sendo 43.389 brasileiros. J&aacute; hav&iacute;amos (12/06) ultrapassado o Reino Unido e estamos, apenas, atr&aacute;s dos EUA, com cerca de 116.744 mortos. Na maior crise de toda a rep&uacute;blica, crise sanit&aacute;ria, econ&ocirc;mica, pol&iacute;tica, institucional e social, o Brasil e os brasileiros n&atilde;o contam com a lideran&ccedil;a de seu presidente, Jair Bolsonaro. Do in&iacute;cio da pandemia at&eacute; agora, o presidente tratou a doen&ccedil;a com menoscabo e, ainda, demonstrou a incr&iacute;vel insensibilidade pela dor dos que adoeceram e pelo luto dos que perderam seus amigos e entes queridos. Na &uacute;ltima rodada da pesquisa XP/Ipesp (12/06), na dimens&atilde;o que avalia a atua&ccedil;&atilde;o de Bolsonaro para enfrentar o coronav&iacute;rus, em junho/20, temos que: 55% consideram ruim/p&eacute;ssima, 20% regular e 23% &oacute;timo/boa. H&aacute;, por outro lado, uma base coesa e resiliente na casa dos 30% (&oacute;timo e bom) que aprovam o governo. Esses bolsonaristas convictos conjugados &agrave; aus&ecirc;ncia de manifesta&ccedil;&otilde;es de peso nas ruas (por conta da pandemia) e ao sil&ecirc;ncio dos atores pol&iacute;ticos t&ecirc;m dado ao governo f&ocirc;lego que, creio, em outra situa&ccedil;&atilde;o ele n&atilde;o desfrutaria. <br /> <br /> Os mortos pelo Covid-19 j&aacute; somam, praticamente, os assassinados ou as vidas perdidas no tr&acirc;nsito, em 2019. S&atilde;o, tamb&eacute;m, n&uacute;meros de um pa&iacute;s em guerra, com mortes que, em boa parte, poderiam ter sido evitadas. Se, inicialmente, Bolsonaro tivesse assumido a condi&ccedil;&atilde;o de l&iacute;der, coordenado as a&ccedil;&otilde;es governamentais junto aos estados, prestigiado seus ministros da sa&uacute;de, lutado pelo distanciamento social e n&atilde;o o contr&aacute;rio, o cen&aacute;rio, certamente, seria outro. Infelizmente, n&atilde;o &eacute;. E tende a piorar. N&atilde;o chegamos, apontam os especialistas, no pico da doen&ccedil;a. Vacinas ou rem&eacute;dios eficazes n&atilde;o se encontram dispon&iacute;veis. Culturalmente, muitos brasileiros n&atilde;o d&atilde;o, racionalmente, a import&acirc;ncia &agrave; doen&ccedil;a e isso n&atilde;o apenas pelas mensagens contr&aacute;rias do presidente, mas, essencialmente, por uma aus&ecirc;ncia de cidadania mais bem constitu&iacute;da, de valores c&iacute;vicos e de respeito &agrave; vida. <br /> <br /> Particularmente, no in&iacute;cio da pandemia, em meados de mar&ccedil;o, imaginei que tomar&iacute;amos as precau&ccedil;&otilde;es individuais necess&aacute;rias objetivando evitar a dissemina&ccedil;&atilde;o do v&iacute;rus. Pensei que, em algum momento, o governo fosse cair na real e mudar sua posi&ccedil;&atilde;o negacionista e de ataques aos protocolos m&eacute;dicos e cient&iacute;ficos. Fui, confesso, ing&ecirc;nuo. Uma sociedade que considera normal esses n&uacute;meros de homic&iacute;dios e mortes no tr&acirc;nsito h&aacute; anos em um determinado momento tamb&eacute;m faria o mesmo com o coronav&iacute;rus. <br /> <br /> Por <i><b>Rodrigo Augusto Prando</b></i> &eacute; professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie, do Centro de Ci&ecirc;ncias Sociais e Aplicadas. Graduado em Ci&ecirc;ncias Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp de Araraquara.<br />