A RAZÃO SOBRE A EMOÇÃO

15 de junho de 2020 às 18:25

Gaudêncio Torquato
O voto, a maior arma de defesa da democracia, est&aacute; deixando o cora&ccedil;&atilde;o para subir &agrave; cabe&ccedil;a. A hip&oacute;tese pode at&eacute; parecer estramb&oacute;tica nesses tempos de intensa polariza&ccedil;&atilde;o, quando o frenesi das emo&ccedil;&otilde;es parece ganhar de capote para o jogo da raz&atilde;o. Enganam-se, por&eacute;m, aqueles que imaginam emo&ccedil;&atilde;o como sin&ocirc;nimo de explos&atilde;o, catarse, palavras de baixo cal&atilde;o (que passaram a frequentar a linguagem dos governantes), slogans, refr&atilde;os, culto aos mitos. Quando algu&eacute;m, ante uma trag&eacute;dia como a que estamos vivenciando com a pandemia do Covid-19, diz - &ldquo;nunca vi tanto desgoverno, n&atilde;o aguento mais, estou arrependido do meu voto na &uacute;ltima elei&ccedil;&atilde;o&rdquo; - est&aacute; falando pelo cora&ccedil;&atilde;o ou pela cabe&ccedil;a?<br /> <br /> &Agrave; primeira vista, as express&otilde;es parecem sair das veias do cora&ccedil;&atilde;o. Ocorre que elas s&atilde;o o resultado de um somat&oacute;rio de conhecimento, acompanhamento da pol&iacute;tica, compara&ccedil;&atilde;o com outros ciclos hist&oacute;ricos, observa&ccedil;&atilde;o acurada do que se passa ao redor. Nesse caso, temos de convir que um processo racional se desenvolveu. A raz&atilde;o prevaleceu, admitindo-se, claro, que coabita com a emo&ccedil;&atilde;o na vida dos interlocutores. O fato &eacute; que, nas &uacute;ltimas d&eacute;cadas, decepcionadas com representantes e governantes, as pessoas d&atilde;o as costas &agrave; pol&iacute;tica e iniciam uma jornada de revis&atilde;o em sua maneira de escolher os quadros p&uacute;blicos.<br /> <br /> Na Europa, o desenvolvimento do sentido cr&iacute;tico ocorre ao longo dos ciclos pol&iacute;ticos. Pol&iacute;ticas sociais fracassadas, os desvios da socialdemocracia, projetos liberalizantes que n&atilde;o deram certo, projetos inadequados e mesmo a corrup&ccedil;&atilde;o t&ecirc;m sido o pano de fundo para a altera&ccedil;&atilde;o dos comandos entre partidos. O afastamento de uns e a chegada de outros ao poder ocorre sob o fluxo de um conceito que os franceses designam como &ldquo;autogest&atilde;o&rdquo; t&eacute;cnica, pelo qual as pessoas definem o que esperam e o que querem dos governos e estabelecem meios e condi&ccedil;&otilde;es para atingir sua meta. Nos EUA, onde dois partidos dominam a cena, democrata e republicano, &eacute; mais f&aacute;cil selecionar representantes e governantes. Vota-se naquele que melhor atende as expectativas do eleitor.<br /> <br /> Por nossas plagas, a paisagem &eacute; deserta. De ideias e l&iacute;deres. Imensos buracos negros se multiplicam na constela&ccedil;&atilde;o pol&iacute;tica, abertos pela aus&ecirc;ncia de express&otilde;es de porte, quadros qualificados, pensadores e formuladores pol&iacute;ticos de alta densidade. N&atilde;o se formam mais pol&iacute;ticos como antigamente.&nbsp; Lembre-se, no entanto, que mudaram as condi&ccedil;&otilde;es da pol&iacute;tica. Os parlamentos j&aacute; n&atilde;o t&ecirc;m mais a for&ccedil;a de antigamente, as oposi&ccedil;&otilde;es perderam parte de seu tradicional vigor, o discurso se torna grupal/partid&aacute;rio/fisiol&oacute;gico, enquanto as tribunas n&atilde;o conseguem traduzir a liturgia e o calor dos grandes embates.<br /> <br /> O carisma, brilho pr&oacute;prio e nato que serve para emoldurar perfis, tamb&eacute;m fenece sob a frieza calculista da pol&iacute;tica de resultados.&nbsp; As causas nacionais cedem lugar a interesses de grupos e setores. As linguagens se aproximam. Os comportamentos se igualam. O varejo se instala na esteira do conceito da pol&iacute;tica, que deixa de ser miss&atilde;o para ser profiss&atilde;o. A &eacute;tica ganha contornos adjetivados para servir &agrave;s circunst&acirc;ncias.<br /> <br /> A coragem, a aud&aacute;cia, o zelo e a obstina&ccedil;&atilde;o, valores inerentes &agrave;s lideran&ccedil;as, tornam-se escassos. O rigor na apura&ccedil;&atilde;o de esc&acirc;ndalos s&oacute; ocorre sob o pared&atilde;o de press&atilde;o da opini&atilde;o p&uacute;blica. Quando a sociedade reclama, o sistema pol&iacute;tico corta dedos para n&atilde;o perder os bra&ccedil;os.<br /> <br /> E o que faz o l&iacute;der? Defende frentes de interesse. Grupamentos corporativos. A lideran&ccedil;a natural est&aacute; agonizante. O caso de Lula &eacute; emblem&aacute;tico. Seu estoque de carisma est&aacute; se esvaziando. Tem o PT como seu trono, onde assume o papel de onipotente e onisciente. Diz que o PT n&atilde;o assina lista de Frente Ampla porque o partido n&atilde;o &eacute; mais aquele do dito politicamente incorreto: &ldquo;Maria vai com as outras&rdquo;. Falha de raz&atilde;o e excesso de emo&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> A esfera pol&iacute;tica n&atilde;o v&ecirc; a nova identidade em desenvolvimento no Brasil. Que cresce sob o signo da raz&atilde;o, do planejamento, do aproveitamento de oportunidades. No paiol das lideran&ccedil;as, as cores da mesmice se instalaram h&aacute; muitos anos, gerando um discurso que n&atilde;o afeta, n&atilde;o entusiasma, n&atilde;o entra na alma. Nomes ali expostos s&atilde;o os mesmos de 20, 30 anos atr&aacute;s.<br /> <br /> Nesse ano de pandemia, a ser seguido pelo calend&aacute;rio eleitoral, o superlativo dominar&aacute; a express&atilde;o pol&iacute;tica, a verdade se cobrir&aacute; com as cores de fake news, e o mundo real dividir&aacute; suas cores com o mundo virtual. Esperemos que a passarela entre esses dois universos seja pavimentada pela preval&ecirc;ncia da raz&atilde;o sobre a emo&ccedil;&atilde;o. E que n&atilde;o deixemos a polariza&ccedil;&atilde;o eleger radicais. Que o cabo de guerra seja substitu&iacute;do pelo tronco da paz.<br /> <br /> <img src="/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" alt="" width="60" hspace="3" height="80" align="left" /><br /> <br /> Por <b><i>Gaud&ecirc;ncio Torquato</i></b>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o Twitter@gaudtorquato. Acesse o blog <a href="http://www.observatoriodaeleicao.com/" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><i><u>www.observatoriopolitico.org</u></i></span></a><br />