A Inelegibilidade de candidatos e a prorrogação das eleições 2020

08 de setembro de 2020 às 11:13

Savio Chalita
A Constitui&ccedil;&atilde;o Federal assegura o chamado &quot;<i><b>sufr&aacute;gio universal</b></i>&quot;, de modo que os requisitos para o exerc&iacute;cio da democracia pelo titular do poder (o povo) n&atilde;o podem ser de tal forma r&iacute;gidos que impe&ccedil;am ou restrinjam a concreta participa&ccedil;&atilde;o popular. &Eacute; o caso, por exemplo, do sufr&aacute;gio restrito censit&aacute;rio (restri&ccedil;&otilde;es relacionadas &agrave; condi&ccedil;&atilde;o financeira) e capacit&aacute;rio (restri&ccedil;&otilde;es relacionadas &agrave; capacidade t&eacute;cnica, de instru&ccedil;&atilde;o).<br /> &nbsp;<br /> Desta forma, para o exerc&iacute;cio de direitos pol&iacute;ticos, &eacute; suficiente que o indiv&iacute;duo possua v&iacute;nculo de nacionalidade (brasileiro nato ou naturalizado. Sendo ainda poss&iacute;vel que, por for&ccedil;a do Tratado da Amizade celebrado entre Brasil e Portugal, o portugu&ecirc;s residente h&aacute; 3 anos ininterruptos no Brasil, em pleno gozo dos direitos pol&iacute;ticos em seu pa&iacute;s de origem, havendo reciprocidade de tratamento aos brasileiros em Portugal e existindo requerimento neste sentido, ser&aacute; equiparado ao brasileiro naturalizado para este fim de exerc&iacute;cio de direitos), e tenha no m&iacute;nimo 16 anos para exercer direitos pol&iacute;ticos, mas ainda com restri&ccedil;&otilde;es constitucionais relacionadas &agrave;s idades m&iacute;nimas. Cumpridas estas exig&ecirc;ncias, e ap&oacute;s requerimento de alistamento junto &agrave; justi&ccedil;a eleitoral, ter&aacute; o indiv&iacute;duo assumido o v&iacute;nculo pol&iacute;tico de cidadania com o estado.<br /> &nbsp;<br /> Ainda que para o exerc&iacute;cio dos direitos pol&iacute;ticos sejam m&iacute;nimos os requisitos estabelecidos, pela orienta&ccedil;&atilde;o da esp&eacute;cie de sufr&aacute;gio adotado, a Constitui&ccedil;&atilde;o registrou condi&ccedil;&otilde;es para os cidad&atilde;os que venham intentar exercer seus direitos pol&iacute;ticos em um patamar passivo, como candidato a um cargo p&uacute;blico eletivo. Esta ocasi&atilde;o exige o cumprimento de dois conjuntos de situa&ccedil;&otilde;es: a) cumprir com as condi&ccedil;&otilde;es de elegibilidade, e, b) n&atilde;o incorrer em hip&oacute;teses de inelegibilidade.<br /> &nbsp;<br /> As condi&ccedil;&otilde;es de elegibilidade s&atilde;o tratadas apenas pela Constitui&ccedil;&atilde;o Federal (art. 14, &sect;3&ordm;, CF), n&atilde;o cabendo ao legislador (infraconstitucional) inovar, mas apenas operacionalizar a forma de demonstra&ccedil;&atilde;o destas condi&ccedil;&otilde;es (procedimento do registro da candidatura, documentos que demonstrar&atilde;o as condi&ccedil;&otilde;es, prazos, etc). <br /> <br /> J&aacute; as hip&oacute;teses de inelegibilidade, por pr&oacute;pria determina&ccedil;&atilde;o constitucional, s&atilde;o pass&iacute;veis de serem estabelecidas tanto pelo constituinte origin&aacute;rio (como de fato est&atilde;o relacionadas no art. 14, &sect;4&ordm; ao 7&ordm;, CF) como tamb&eacute;m pelo legislador infraconstitucional, por autoriza&ccedil;&atilde;o expressa do art. 14, &sect;9&ordm;, CF. <br /> <br /> Podemos resumir que as hip&oacute;teses de inelegibilidade devem ser reconhecidas como a) de natureza constitucional (previstas no pr&oacute;prio texto, como indicado anteriormente. E, dentre elas, a possibilidade de &uacute;nica recondu&ccedil;&atilde;o ao cargo de chefe do executivo, inelegibilidade reflexa por v&iacute;nculo familiar e a desincompatibiliza&ccedil;&atilde;o do chefe de executivo para concorrer a outros cargos), e b) de natureza infraconstitucional/ legal, sendo atualmente aquelas dispostas na Lei Complementar 64/90 (Lei das Inelegibilidades), com as altera&ccedil;&otilde;es e inser&ccedil;&otilde;es apresentadas pela Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa). <br /> <br /> <b>O que s&atilde;o inelegibilidades, seu alcance e dura&ccedil;&atilde;o </b><br /> <br /> Um &quot;<i><b>cidad&atilde;o ineleg&iacute;vel</b></i>&quot; &eacute; o mesmo que um cidad&atilde;o com &quot;<i><b>direitos pol&iacute;ticos suspensos</b></i>&quot;? A resposta &eacute; negativa. Isto porque os direitos pol&iacute;ticos de um cidad&atilde;o compreender&atilde;o tanto a esp&eacute;cie ativa (votar, responder &agrave;s consultas populares de plebiscito e referendo, e subscrever projeto de lei de iniciativa popular, por exemplo) quanto passiva (colocar-se &agrave; disposi&ccedil;&atilde;o de seus pares, na condi&ccedil;&atilde;o de candidato, em um processo de escolha p&uacute;blica de representantes, ou seja, as elei&ccedil;&otilde;es). <br /> <br /> Com esta distin&ccedil;&atilde;o de conceitos, &eacute; poss&iacute;vel esclarecer que a suspens&atilde;o de direitos pol&iacute;ticos, com mais amplo alcance, impossibilita que, durante tempo determinado (hip&oacute;teses autorizativas do art. 15, CF), o cidad&atilde;o exer&ccedil;a tanto os direitos pol&iacute;ticos ativos quanto passivos. J&aacute; a inelegibilidade, envolver&aacute; t&atilde;o somente o exerc&iacute;cio dos direitos pol&iacute;ticos passivos (ou seja, de ser candidato).<br /> &nbsp;<br /> Assim nem todo ineleg&iacute;vel &eacute; necessariamente um cidad&atilde;o com direitos pol&iacute;ticos suspensos. Mas, em alguns casos, isso pode acontecer. Por exemplo: cidad&atilde;o condenado por crime, situa&ccedil;&atilde;o contr&aacute;ria &eacute; o que se observa, por exemplo, no caso de condenado por crime contra a economia popular, a f&eacute; p&uacute;blica, a administra&ccedil;&atilde;o p&uacute;blica e o patrim&ocirc;nio p&uacute;blico (art. 1&ordm;, I, a, LC 64/90) ser&aacute; ineleg&iacute;vel se tiver a condena&ccedil;&atilde;o proferida ou decidida por &oacute;rg&atilde;o colegiado (mais do que um julgador decidindo, como &eacute; o caso de decis&otilde;es de primeiro grau que s&atilde;o conduzidas para an&aacute;lise em sede de recurso nos tribunais) e ter&aacute; direitos pol&iacute;ticos suspensos caso exista o tr&acirc;nsito em julgado da decis&atilde;o condenat&oacute;ria (s&atilde;o efeitos distintos para a pr&aacute;tica da conduta exemplificada).<br /> &nbsp;<br /> O prazo das inelegibilidades foi, de certa forma, unificado pela LC 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), que tamb&eacute;m cuidou de criar novas hip&oacute;teses de inelegibilidade, ao estabelecer 8 anos (em alguns casos, como no art. 1&ordm;, I, k, LC 64/90, o prazo pode acabar somando per&iacute;odo pouco superior). <br /> <br /> <b>Elei&ccedil;&otilde;es Municipais de 2020, Pandemia de covid-19 e a PEC 107/2020 </b><br /> <br /> Com o reconhecimento do estado de calamidade p&uacute;blica em raz&atilde;o da pandemia da covid-19 (Decreto Legislativo 6/2020) e a necessidade de observ&acirc;ncia ao calend&aacute;rio eleitoral das elei&ccedil;&otilde;es municipais de 2020, ap&oacute;s debates e reflex&otilde;es, o Congresso Nacional promulgou a EC 107/2020, adiando as elei&ccedil;&otilde;es municipais. A natureza normativa utilizada para o adiamento se deu justamente pelo fato de que a data de ocorr&ecirc;ncia das elei&ccedil;&otilde;es ser estabelecida pelo pr&oacute;prio Texto Constitucional (art. 29, I e II, CF), n&atilde;o sendo vi&aacute;vel outra forma que n&atilde;o atrav&eacute;s do poder de reforma. No entanto, a EC 107 ter&aacute; aplica&ccedil;&atilde;o exaurida ap&oacute;s a conclus&atilde;o do pleito de 2020, diante de sua especialidade. <br /> <br /> Ocorre que o adiamento promovido pela referida Emenda, resultou em um sist&ecirc;mico e necess&aacute;rio ajuste no calend&aacute;rio eleitoral, especificamente quanto aos prazos e observ&acirc;ncias que ainda n&atilde;o haviam sido alcan&ccedil;ados at&eacute; a data de sua promulga&ccedil;&atilde;o. Dentre os ajustes, um impasse: qual seria a posi&ccedil;&atilde;o a ser adotada quanto &agrave;queles que eram ineleg&iacute;veis at&eacute; a data ordin&aacute;ria do pleito eleitoral de 2020? O prazo de inelegibilidade tamb&eacute;m seria estendido? Este impasse, foi recentemente apreciado por ocasi&atilde;o de Consulta feita pelo Deputado Federal C&eacute;lio Studart (PV/CE) ao Tribunal Superior Eleitoral (autos da CT 0601143-68, rel. Min. Edson Fachin, 02.09.2020).<br /> &nbsp;<br /> Por maioria (4 votos a 3), acompanhando a diverg&ecirc;ncia do Min. Alexandre de Moraes, o TSE proferiu resposta no sentido da impossibilidade de posterga&ccedil;&atilde;o do prazo de inelegibilidade, dado o adiamento promovido pela EC 107/2020. <br /> <br /> O voto de diverg&ecirc;ncia, embora ascenda contrariedade popular por &quot;<i><b>permitir a participa&ccedil;&atilde;o de fichas sujas</b></i>&quot;, acena em conformidade com o que disp&otilde;e a manifesta&ccedil;&atilde;o de vontade do Constituinte Origin&aacute;rio. Isto porque os direitos pol&iacute;ticos, compreendidos como direito humano reconhecido por documentos internacionais e internalizado como um direito fundamental em nosso sistema jur&iacute;dico vigente, n&atilde;o pode/n&atilde;o deve sofrer restri&ccedil;&atilde;o al&eacute;m do quanto tratado no pr&oacute;prio Texto. Discut&iacute;vel tamb&eacute;m seria a possibilidade da pr&oacute;pria EC 107/2020 dispor sobre a prorroga&ccedil;&atilde;o dos efeitos destas inelegibilidades, fato que n&atilde;o ocorreu. <br /> <br /> A ado&ccedil;&atilde;o pelo sufr&aacute;gio universal, de expressamente inserir a participa&ccedil;&atilde;o pol&iacute;tica em rol protetivo de direitos fundamentais, dos princ&iacute;pios decorrentes (tal como a veda&ccedil;&atilde;o da restri&ccedil;&atilde;o ou amplia&ccedil;&atilde;o de restri&ccedil;&atilde;o de direitos pol&iacute;ticos por parte do int&eacute;rprete da norma), o princ&iacute;pio da anualidade eleitoral e outros, s&atilde;o exemplos dos fundamentos que podem ser buscados a justificar que o prazo de cessa&ccedil;&atilde;o das inelegibilidades n&atilde;o poderiam ser postergadas por interpreta&ccedil;&atilde;o ao evento imprevis&iacute;vel da pandemia (que justificou a posterga&ccedil;&atilde;o do pleito). De fato a san&ccedil;&atilde;o da inelegibilidade, se encontrar termo em Outubro de 2020, ter&aacute; cumprido sua fun&ccedil;&atilde;o que, claramente, imp&otilde;e limita&ccedil;&atilde;o temporal (8 anos) e n&atilde;o n&uacute;mero de pleitos (A LC 64/90, por exemplo, poderia ter optado por indicar que a inelegibilidade se dariam nas duas legislaturas seguintes, nos mandatos subsequentes, mas n&atilde;o o fez). <br /> <br /> Desta forma, mais uma vez, a grande e mais eficiente solu&ccedil;&atilde;o para manter afastados dos cargos p&uacute;blicos eletivos cidad&atilde;os que ostentam um passado de pouco respeito &agrave;s condi&ccedil;&otilde;es que legitimamente nutrimos de um representante, &eacute; o voto. N&atilde;o h&aacute; prazo de inelegibilidade ou suspens&atilde;o de direitos pol&iacute;ticos capazes de suprir os efeitos de uma consciente manifesta&ccedil;&atilde;o de outorga de poder em uma urna. <br /> <br /> Por <i><b>Savio Chalita</b></i> &eacute; mestre em Direito, professor e coordenador de Est&aacute;gio e Protagonismo Estudantil da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Alphaville.<br />