A seca na seara dos valores

29 de setembro de 2020 às 17:36

Gaudêncio Torquato
O processo civilizat&oacute;rio se assemelha a uma r&eacute;gua que mede a evolu&ccedil;&atilde;o de costumes, princ&iacute;pios e valores, avan&ccedil;os e retrocessos. Nem sempre ocorrem mudan&ccedil;as que emoldurem a hist&oacute;ria do Homem, principalmente ante a paisagem de devasta&ccedil;&atilde;o que flagra crescente litigiosidade entre seres e Na&ccedil;&otilde;es, desvairada competividade no campo dos neg&oacute;cios e empreendimentos, luta acirrada entre grupos, alas e at&eacute; credos religiosos, cada qual com a ambi&ccedil;&atilde;o de brilhar na galeria dos maiores e melhores. Em alguns nichos, os avan&ccedil;os fluem sob a &eacute;gide de pesquisas cient&iacute;ficas em &aacute;reas como as ci&ecirc;ncias biom&eacute;dicas, a intelig&ecirc;ncia artificial, a agricultura, a engenharia de produ&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> Mas &eacute; ineg&aacute;vel que, no sagrado altar dos valores, a Humanidade v&ecirc; esgar&ccedil;ada sua teia,&nbsp; particularmente no plano da Dignidade. A ambi&ccedil;&atilde;o, a luta do poder pelo poder, a inveja, a mentira, as falsidades que impregnam a interlocu&ccedil;&atilde;o entre as pessoas, enfim, a ideia de que se deve tirar proveito de tudo, constituem, entre outros, os bra&ccedil;os que puxam o planeta para o seio de nossa ancestralidade. Olhe-se para esse mundo pand&ecirc;mico como exemplo de interesses pol&iacute;ticos, econ&ocirc;micos, geogr&aacute;ficos, a denotar que nem a ci&ecirc;ncia pura est&aacute; livre de injun&ccedil;&otilde;es oportunistas, essas que atuam at&eacute; na esfera eleitoral, como se constata, hoje, por aqui e por acol&aacute;, sendo bom exemplo a quadra eleitoral em que vivem os Estados Unidos.<br /> <br /> A era do valor do compromisso est&aacute; indo embora. Nossos pais e av&oacute;s, ao firmarem neg&oacute;cios, garantiam pela palavra dada ao parceiro, o fechamento do acordo. Os pap&eacute;is em cart&oacute;rio apenas finalizavam uma cultura sagrada: a for&ccedil;a da palavra dada. O d&eacute;bito, o cr&eacute;dito, a cren&ccedil;a, a aceita&ccedil;&atilde;o, a rejei&ccedil;&atilde;o de alguma coisa tinham por tr&aacute;s o compromisso expl&iacute;cito. A identidade das pessoas e perfis era ancorada na conversa que ditava as regras do cotidiano. Claro, havia desaven&ccedil;as. E at&eacute; mortes nos conflitos de fam&iacute;lias que lutavam pelo poder. Mas certo respeito se via at&eacute; entre rivais.<br /> <br /> A educa&ccedil;&atilde;o era um momento de grandeza. Os pais lutavam, suavam, apuravam seus recursos para formar os filhos. N&atilde;o eram Bolsas de Valores que pescavam o dinheiro. Os pais guardavam seus mil r&eacute;is em velhos e pesados cofres ou sob o colch&atilde;o. Formar um filho, dar a ele a educa&ccedil;&atilde;o para enfrentar desafios do futuro &ndash; era o ideal dos chefes de fam&iacute;lia. Que exibiam orgulho pela prole bem educada, instru&iacute;da. Riquezas foram investidas na educa&ccedil;&atilde;o dos filhos, a ponto de muitos terem morrido pobres. Por&eacute;m, felizes.<br /> <br /> O educador era uma refer&ecirc;ncia. De saber, de grandeza, de boa orienta&ccedil;&atilde;o, de conjun&ccedil;&atilde;o de bons prop&oacute;sitos. Pin&ccedil;o, aqui, um caso contado por um rabino durante um casamento. A historinha se alastra num v&iacute;deo que circula nas redes. Um ex-aluno encontra seu velho professor, aproxima-se e pergunta: &ldquo;lembra de mim&rdquo;? Responde o mestre: &ldquo;N&atilde;o, quem &eacute; voc&ecirc;? Ah, deve ter sido meu aluno&rdquo;. O rapaz relembra a situa&ccedil;&atilde;o ocorrida na escola. Viu um colega com lindo e caro rel&oacute;gio e o surrupiou. O menino,&nbsp; ao constatar o roubo, abriu o bico. Quem foi, quem n&atilde;o foi? Balb&uacute;rdia. O professor fechou a porta e pediu que todos formassem uma fila. O raptor ficou desesperado. Iria ser flagrado, pois o professor iria procurar o rel&oacute;gio em todos os bolsos. Surpresa: pediu para todos fecharem os olhos. E assim conseguiu recuperar o roubo. O ex-aluno continua a conversa: &ldquo;professor, o senhor salvou minha alma, minha dignidade. O senhor sabe que fui eu&rdquo;. O mestre: &ldquo;n&atilde;o, eu nunca soube que foi voc&ecirc;. Eu tamb&eacute;m estava de olhos fechados&rdquo;.<br /> <br /> Belo exemplo de educador. Que n&atilde;o tinha inten&ccedil;&atilde;o de punir, mas a de transmitir o legado de considera&ccedil;&atilde;o pelo outro. Uma aula de Dignidade. Que cai bem nesses tempos de acusa&ccedil;&otilde;es rec&iacute;procas, de falsidades, de &oacute;dio, de guerras fratricidas. Somos um mundo cheio de car&ecirc;ncias materiais. A fome ataca e mata milh&otilde;es, principalmente na &Aacute;frica e em peda&ccedil;os da &Aacute;sia. Mas a fome espiritual, essa que esvazia nossos sentimentos, destr&oacute;i nossas searas de valores, ataca grupos e classes, principalmente os habitantes de cima da pir&acirc;mide social, movidos pelo impulso da ambi&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> Qual a raz&atilde;o? A vontade de poder. Nietzsche escreveu sobre &ldquo;A vontade de Poder&rdquo;, mas nunca publicou um livro com este nome. Ap&oacute;s sua morte, a irm&atilde; Elizabeth publicou uma colet&acirc;nea de notas in&eacute;ditas. Ali se l&ecirc;: &ldquo;Voc&ecirc; quer um nome para este mundo? Uma solu&ccedil;&atilde;o para todos os seus enigmas? Este mundo &eacute; a vontade de poder &ndash; e nada al&eacute;m disso! E voc&ecirc;s tamb&eacute;m s&atilde;o essa vontade de poder &ndash; e nada al&eacute;m disso&rdquo;.<br /> <br /> Essa maldita vontade, no meio da maior crise que o mundo atravessa na atualidade, amea&ccedil;a expandir a Era do Mal.<br /> &nbsp;<br /> <img src="/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Por <b><i>Gaud&ecirc;ncio Torquato</i></b>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o Twitter@gaudtorquato - Acesse o blog <a href="https://www.observatoriopolitico.org/" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><i><u>www.observatoriopolitico.org</u></i></span></a><br />