A DEUSA TÊMIS MORRE DE RIR

14 de outubro de 2020 às 10:43

Gaudêncio Torquato
A mentira tem perna curta. O desembargador Kassio Nunes Marques certamente n&atilde;o imaginava que seu curriculum vitae e seus escritos fossem vasculhados pela imprensa. E sua verdade questionada. Teria ouvido palestras que apareceram como curso de p&oacute;s-doutorado. Mesmo com perna curta, a mentira corre como gazela. De repente, Kassio viu seu conceito escapar pela janela da disson&acirc;ncia.<br /> <br /> A n&atilde;o ser que o juiz piauiense indicado para entrar no STF na vaga de Celso de Melo tenha se inspirado em Brecht, que escreveu um ensaio sobre &ldquo;cinco maneiras de dizer a verdade&rdquo;. O momento e as circunst&acirc;ncias poderiam, por exemplo, ter sido usados para refor&ccedil;ar sua bagagem acad&ecirc;mica, ferramenta para alargar o tamanho do seu perfil.<br /> <br /> Ocorre que o STF &eacute; a nossa mais alta corte. E deve ser composto por quadros de boa envergadura. &Eacute; inimagin&aacute;vel pensar que teria dito que, para ser membro do Supremo, n&atilde;o &eacute; necess&aacute;rio ser advogado, mas pessoa de car&aacute;ter ilibado. Deve ter se valido desse artigo da CF:<br /> <div style="margin-left: 40px;"><br /> &ldquo;Art. 101. O Supremo Tribunal Federal comp&otilde;e-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidad&atilde;os com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de not&aacute;vel saber jur&iacute;dico e reputa&ccedil;&atilde;o ilibada.<br /> &nbsp;<br /> Par&aacute;grafo &uacute;nico. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal ser&atilde;o nomeados pelo Presidente da Rep&uacute;blica, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.&rdquo;</div> <br /> Na pol&ecirc;mica aberta com esta explica&ccedil;&atilde;o, entra o caso de C&acirc;ndido Barata Ribeiro, m&eacute;dico, baiano e prefeito do Rio de Janeiro de 1892 a 1893. Foi ministro por 10 meses e 4 dias.<br /> <br /> Ora, o mundo mudou e ningu&eacute;m pode ignorar o fato de que a &aacute;rea onde uma pessoa adquire &ldquo;not&aacute;vel saber jur&iacute;dico&rdquo; &eacute; a do Direito. Pode, at&eacute;, existir uma exce&ccedil;&atilde;o a esta &oacute;bvia constata&ccedil;&atilde;o, o que causaria furor ao tribuno da Advocacia, Rui Barbosa. A sapi&ecirc;ncia &eacute;, por excel&ecirc;ncia, o valor matricial do juiz. Seu v&eacute;rtice. Sua b&uacute;ssola. Sapi&ecirc;ncia &eacute; bem mais que dom&iacute;nio de conhecimento. &Eacute; o uso do saber no caso certo e no momento adequado. &Eacute; a aplica&ccedil;&atilde;o da norma, ap&oacute;s exaustivo exerc&iacute;cio de hermen&ecirc;utica jur&iacute;dica. &Eacute; hora de lembrar a li&ccedil;&atilde;o de Francis Bacon (Ensaios, 1597): &ldquo;o Juiz deve preparar o caminho para uma justa senten&ccedil;a, como Deus costuma abrir seu caminho elevando os vales e abaixando montanhas&rdquo;.<br /> <br /> A justa senten&ccedil;a &eacute; a luz que guia a decis&atilde;o do juiz. Infelizmente, muitas vezes, na hora de assinar a decis&atilde;o, a luz &eacute; t&ecirc;nue ou est&aacute; apagada, o que sinaliza algum acidente/incidente que mexeu com a inten&ccedil;&atilde;o origin&aacute;ria do juiz. Por isso, T&ecirc;mis, a deusa da Justi&ccedil;a, nem sempre faz bom uso da balan&ccedil;a e da espada, instrumentos que adornam sua vestimenta.<br /> <br /> Na &oacute;rbita desta abordagem, parece fora de tom dizer que, mais adiante, ser&aacute; inserido na mais alta Corte do pa&iacute;s um ministro &ldquo;terrivelmente evang&eacute;lico&rdquo;. Qual a raz&atilde;o de op&ccedil;&atilde;o por identidade religiosa? Pelo entendimento de que n&atilde;o h&aacute; ministro religioso no Supremo? Ou, pior, porque os ministros que l&aacute; est&atilde;o s&atilde;o todos &ldquo;cat&oacute;licos&rdquo;? Sua Excel&ecirc;ncia, o Presidente, demonstra vontade de jogar no lixo o preceito do Cristo: &ldquo;da&iacute; a C&eacute;sar o que &eacute; de Cesar e a Deus o que &eacute; de Deus&rdquo;.<br /> <br /> Se a ordem pol&iacute;tica come&ccedil;a a ser movida pelo tabuleiro das religi&otilde;es, a barafunda se instalar&aacute;. As seitas afro-brasileiras poder&atilde;o reivindicar um nome que as represente, sob a indigna&ccedil;&atilde;o e protestos do bispo Edir Macedo e do pastor Silas Malafaia. Que elegem bancadas no Congresso. N&atilde;o haver&aacute; surpresa se o d&iacute;zimo passar a ser contribui&ccedil;&atilde;o legal para confirma&ccedil;&atilde;o religiosa. O doador receber&aacute; uma carteira de dizimista e, nessa condi&ccedil;&atilde;o, poder&aacute; ser compensado com a promessa de ganhar lugar privilegiado na fila que espera adentrar o territ&oacute;rio dos C&eacute;us.<br /> <br /> Pois &eacute;, o desembargador Kassio n&atilde;o calculou o tamanho da confus&atilde;o em que est&aacute; se metendo. Dados sobre sua trajet&oacute;ria a serem questionados, sabatina no Senado com verdades inconvenientes, decis&otilde;es no amanh&atilde; que poder&atilde;o arranhar sua imagem, pol&ecirc;mica com base bolsonarista e a maldi&ccedil;&atilde;o evang&eacute;lica. A deusa T&ecirc;mis, com uma venda sobre os olhos, deve estar morrendo de rir.<br /> &nbsp;<br /> <img src=" http://www.novoeste.com/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Por <i><b>Gaud&ecirc;ncio Torquato</b></i>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o. Acesse o blog <a href="https://www.observatoriopolitico.org/" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><i><u>www.observatoriopolitico.org</u></i></span></a><br />