Estupro culposo: como se chegou a este absurdo

10 de novembro de 2020 às 19:36

João Ibaixe Jr
O caso da jovem influencer Mariana Ferrer gerou grande repercuss&atilde;o por conta do absurdo da tese divulgada como fundamento para absolver o acusado: &lsquo;<i><b>estupro culposo</b></i>&rsquo;.<br /> &nbsp;<br /> A decis&atilde;o aconteceu num processo da 3&ordf; Vara Criminal de Florian&oacute;polis, em Santa Catarina, onde a jovem figurava como v&iacute;tima, a partir de uma acusa&ccedil;&atilde;o contra o empres&aacute;rio Andr&eacute; de Camargo Aranha.<br /> &nbsp;<br /> Segundo a pr&oacute;pria den&uacute;ncia, ela teria sido dopada e levada a um lugar desconhecido dentro do Caf&eacute; de La Musique, um clube de luxo de Florian&oacute;polis, que a havia contratado com embaixadora naquela noite. No local, fora violada sexualmente pelo empres&aacute;rio, que alegou que ela o provocara e que consentira com o ato.<br /> &nbsp;<br /> No &uacute;ltimo dia 9 de setembro, o acusado foi absolvido porque, de acordo com o pr&oacute;prio promotor de justi&ccedil;a, o acusado n&atilde;o teria como saber que a jovem se opunha, se contrariava ou se negava ao ato, porque n&atilde;o houve como provar que ela estaria b&ecirc;bada. Por esta l&oacute;gica, como n&atilde;o havia condi&ccedil;&otilde;es do acusado saber que a v&iacute;tima n&atilde;o consentia com a rela&ccedil;&atilde;o, a figura do estupro n&atilde;o apresentava elemento volitivo, quer dizer, o acusado n&atilde;o teria &lsquo;vontade&rsquo; de estuprar. Portanto, sem vontade, o crime seria &lsquo;culposo&rsquo;, logo, cabendo absolvi&ccedil;&atilde;o. A tese da aus&ecirc;ncia de prova para demonstrar a embriaguez e o estado de incapacidade da v&iacute;tima foi aceita pelo juiz. <br /> &nbsp;<br /> A par do esc&acirc;ndalo que foi a audi&ecirc;ncia, amplamente divulgada em v&iacute;deo nas redes sociais, e muito al&eacute;m da quest&atilde;o do machismo envolvido como pano de fundo, h&aacute; uma terr&iacute;vel eros&atilde;o no espa&ccedil;o jur&iacute;dico, que denota o atual desprezo com o direito penal p&aacute;trio.<br /> &nbsp;<br /> Com efeito, para o leitor compreender melhor &ndash; sem uma preocupa&ccedil;&atilde;o com muita precis&atilde;o te&oacute;rica &ndash; todo crime configura-se a partir de elementos de composi&ccedil;&atilde;o, chamados de &lsquo;<i><b>elementares do crime</b></i>&rsquo;. Basicamente, s&atilde;o tr&ecirc;s: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.<br /> &nbsp;<br /> A tipicidade &eacute; o elemento de maior destaque e a culpabilidade, hoje, um dos mais problem&aacute;ticos. A vontade para a pr&aacute;tica de um delito reside, como elementar, na tipicidade. Uma conduta, a&ccedil;&atilde;o ou omiss&atilde;o, &eacute; t&iacute;pica quando o agente n&atilde;o s&oacute; executa o ato (ou deixa de execut&aacute;-lo), mas quando tamb&eacute;m tem vontade de realizar o ato em toda sua configura&ccedil;&atilde;o.<br /> &nbsp;<br /> No estupro, basicamente, o ato &eacute; a penetra&ccedil;&atilde;o (mas pode haver outras a&ccedil;&otilde;es). Al&eacute;m da penetra&ccedil;&atilde;o, o agente tem de decidir contrariar o desejo da v&iacute;tima, vale dizer, ele age com viol&ecirc;ncia f&iacute;sica (por meio de for&ccedil;a ou uso de arma) ou moral (por meio de constrangimento excessivo). Quando a v&iacute;tima est&aacute; incapacitada de oferecer resist&ecirc;ncia, pode haver a chamada vulnerabilidade.<br /> &nbsp;<br /> A teoria ainda est&aacute; em evolu&ccedil;&atilde;o e, diferentemente do que se prega (algumas vezes at&eacute; na m&iacute;dia), ela ajuda &ndash; e muito &ndash; tanto na configura&ccedil;&atilde;o do delito, quanto na possibilidade de se condenar criminosos. Mas, atualmente, tudo que &eacute; midi&aacute;tico chama mais a aten&ccedil;&atilde;o, assim, tem-se casos de inocentes condenados e criminosos que escapam.<br /> &nbsp;<br /> Neste especificamente, o descaso com a teoria foi a fonte da indigna&ccedil;&atilde;o e da ridiculariza&ccedil;&atilde;o da tese do promotor e da senten&ccedil;a absolut&oacute;ria.<br /> &nbsp;<br /> O absurdo maior foi a consagra&ccedil;&atilde;o da express&atilde;o &lsquo;<i><b>estupro culposo</b></i>&rsquo;, que j&aacute; virou mote nas redes sociais. A imbecilidade e a burrice no campo jur&iacute;dico acabaram por auxiliar a divulgar uma barbaridade contra a jovem, que foi v&iacute;tima da viol&ecirc;ncia mais degradante, porque, al&eacute;m do estupro, foi v&iacute;tima do constrangimento na investiga&ccedil;&atilde;o dos fatos.<br /> &nbsp;<br /> N&atilde;o fosse a jovem divulgar seu drama nas redes sociais, os fatos ficariam esquecidos e tudo estaria como sempre foi.<br /> &nbsp;<br /> Por&eacute;m, h&aacute; um detalhe grave que se deseja destacar: o caso tem um precedente recente. Neste, a tamb&eacute;m jovem v&iacute;tima n&atilde;o soube utilizar-se das redes sociais o suficiente para se defender. Ademais, n&atilde;o era um empres&aacute;rio apenas rico envolvido, era uma celebridade, muito requisitada e de alta considera&ccedil;&atilde;o em v&aacute;rios meios, principalmente o esportivo.<br /> &nbsp;<br /> Fala-se aqui do caso Neymar X Najila Trindade, ocorrido em 2019, em Paris, quando a jovem, a convite do jogador foi &lsquo;<i><b>visitada</b></i>&rsquo; no quarto em que estava hospedada, pago pelo mesmo jogador. Aqui tamb&eacute;m o estupro foi &lsquo;culposo&rsquo;, mas ningu&eacute;m deu ouvidos. N&atilde;o interessava. Tivesse havido interesse na correta investiga&ccedil;&atilde;o e, talvez, se tivesse evitado o caso Mariana Ferrer.<br /> &nbsp;<br /> O que se espera &eacute; que a campanha das redes sociais permita evitar que outras mulheres sejam v&iacute;timas do mesmo tipo de crime, deste odioso e, hoje, conhecido como &lsquo;<i><b>estupro culposo</b></i>&rsquo;.<br /> &nbsp;<br /> <img src="/uploads/image/artigos_joao-ibaixe-jr_advogado-criminalista-mestre-em-direito.jpg" alt="" width="60" hspace="3" height="80" align="left" /><br /> <br /> Por <i><b>Jo&atilde;o Ibaixe Jr</b></i>, advogado criminalista, mestre em Direito e p&oacute;s-graduado em Filosofia e Teoria Psicanal&iacute;tica, foi delegado de Pol&iacute;cia e presidente da Comiss&atilde;o de Acompanhamento de Inqu&eacute;ritos da OAB-SP, &eacute; membro da Associa&ccedil;&atilde;o dos Advogados<br />