A linguagem é a nossa única chance de liberdade

27 de novembro de 2020 às 19:09

Gustavo Conde
<div style="text-align: center;"><img src="/uploads/image/img_linguagem-unica-chance-liberdade.jpg" width="500" height="290" align="middle" alt="" /></div> <br /> A massifica&ccedil;&atilde;o do sentido e da produ&ccedil;&atilde;o do sentido nas redes sociais instalou uma nova e mais complexa gram&aacute;tica que n&atilde;o aceita simplifica&ccedil;&otilde;es convencionais.<br /> <br /> A humanidade est&aacute; em seu momento &ldquo;fracasso total&rdquo;. S&atilde;o vacinas que d&atilde;o errado por imper&iacute;cia e pressa, &eacute; a desorienta&ccedil;&atilde;o social generalizada em fun&ccedil;&atilde;o de pandemia, &eacute; o racismo expl&iacute;cito seguido de sua nega&ccedil;&atilde;o, &eacute; a aus&ecirc;ncia geral e definitiva de lideran&ccedil;as globais, s&atilde;o elei&ccedil;&otilde;es inconclusas por protocolos eleitorais obsoletos, s&atilde;o genoc&iacute;dios que se multiplicam, &eacute; o ataque final ao meio ambiente, a depreda&ccedil;&atilde;o das j&aacute; precarizadas institui&ccedil;&otilde;es, a delinqu&ecirc;ncia judicial, o sucateamento dram&aacute;tico da interpreta&ccedil;&atilde;o de texto&hellip; &Eacute; o &lsquo;jornalismo&rsquo; &ndash; essa palavra surrada &ndash; em seu pior e mais degradado momento.<br /> <br /> N&atilde;o s&atilde;o fatos isolados.<br /> <br /> E o que une todos eles?<br /> <br /> A linguagem.<br /> <br /> A linguagem humana chegou ao seu momento de colapso. A massifica&ccedil;&atilde;o do sentido e da produ&ccedil;&atilde;o do sentido nas redes sociais instalou uma nova e mais complexa gram&aacute;tica que n&atilde;o aceita simplifica&ccedil;&otilde;es convencionais.<br /> <br /> A l&iacute;ngua explodiu.<br /> <br /> Ela, ao mesmo tempo, estilha&ccedil;a e afunila os dom&iacute;nios da fala. Ao mesmo tempo, democratiza e concentra o controle do dizer. &Eacute; a era dos contr&aacute;rios, das dicotomias, das aporias. Trata-se de um processo novo de experi&ecirc;ncia do discurso e dos sentidos para o qual a nossa subjetividade historicamente insegura &ndash; estruturalmente insegura &ndash; ainda n&atilde;o est&aacute; preparada &ndash; e/ou sequer cogita transitar em terreno t&atilde;o desconhecido: tem medo, repulsa e pregui&ccedil;a.<br /> <br /> Bolsonaro e Trump n&atilde;o s&atilde;o um fen&ocirc;meno: s&atilde;o um sintoma.<br /> <br /> A humanidade fetichizou tanto o imagin&aacute;rio em torno de sua extin&ccedil;&atilde;o e autodestrui&ccedil;&atilde;o, que, agora, se v&ecirc; paralisada &ndash; semanticamente paralisada &ndash; diante da destrui&ccedil;&atilde;o do planeta e si pr&oacute;pria.<br /> <br /> A l&iacute;ngua, domesticada s&eacute;culos a fio, n&atilde;o tem repert&oacute;rio gramatical suficiente para enfrentar o desafio de traduzir seu pr&oacute;prio tempo e colapso. Estamos todos &ldquo;dopados&rdquo; diante da devasta&ccedil;&atilde;o do planeta, com p&iacute;lulas fragil&iacute;ssimas de resili&ecirc;ncia localizada &ndash; em geral, movimentos sociais que s&atilde;o esmagados pela pol&iacute;cia, pelos governos e pela imprensa.<br /> <br /> O que fazer?<br /> <br /> Recorrer &agrave; ci&ecirc;ncia da linguagem &eacute; a &uacute;nica sa&iacute;da &ndash; aliada a uma explos&atilde;o das manifesta&ccedil;&otilde;es art&iacute;sticas. &Eacute; preciso reiventar a metalinguagem. &Eacute; preciso perder o medo da ressignifica&ccedil;&atilde;o. &Eacute; preciso superar as concep&ccedil;&otilde;es obsoletas de l&iacute;ngua e de subjetividade. &Eacute; preciso &lsquo;desanimalizar&rsquo; o ser humano. &Eacute; preciso desencadear um processo massivo de ressignifica&ccedil;&atilde;o das dimens&otilde;es simb&oacute;licas que, at&eacute; aqui, regeram o nosso fracasso enquanto civiliza&ccedil;&atilde;o, &lsquo;justi&ccedil;a&rsquo; e &lsquo;democracia&rsquo; &agrave; frente.<br /> <br /> Essas palavras foram t&atilde;o violentadas pelas hostes animalizadas da linguagem cativa que agonizam no solo sangrento do espancamento p&uacute;blico inconsciente. N&atilde;o h&aacute; sem&acirc;ntica tradicional que d&ecirc; jeito. Tais significantes est&atilde;o rigorosamente condenados, precisam de um recall n&atilde;o apenas simb&oacute;lico, mas formal e est&eacute;tico.<br /> <br /> &Eacute; da&iacute; &ndash; desse cansa&ccedil;o gramatical &ndash; que adv&eacute;m o fascismo, com seu deboche, com seu &oacute;dio e com seu galope brutalizado e triunfal sobre os escombros de corpos e mem&oacute;rias estirados no ch&atilde;o.<br /> <br /> A l&iacute;ngua humana, a mais humanizada das dimens&otilde;es, o vetor que nos torna humanos, a condi&ccedil;&atilde;o &uacute;nica de identifica&ccedil;&atilde;o da esp&eacute;cie, j&aacute; foi negligenciada demais enquanto origem de nossas puls&otilde;es de vida e de morte &ndash; negligenciar estrat&eacute;gico, correspondente &agrave;s moendas perpetuadoras de poder, ferramentas sofisticadas mais conhecidas como &lsquo;neoliberalismo&rsquo;.<br /> <br /> A linguagem &eacute; a nossa &uacute;nica chance de liberdade. Ela &eacute; sin&ocirc;nimo de liberdade.<br /> <br /> Que n&atilde;o se fulanize sua delicadeza estrutural, sua dimens&atilde;o quase m&iacute;stica de significa&ccedil;&atilde;o subjetiva, que n&atilde;o se a simplifique em nome do bom comportamento social, que n&atilde;o se a mate para sobreviver precariamente &agrave; viol&ecirc;ncia paralisante dos dessubjetivados, esse amargo efeito colateral semeado pela atividade simb&oacute;lica.<br /> <br /> &Eacute; na l&iacute;ngua que nos re-encontraremos. &Eacute; na l&iacute;ngua que as identidades nos tomar&atilde;o de volta para um mundo minimamente pass&iacute;vel de contempla&ccedil;&atilde;o e codifica&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> &Eacute; a l&iacute;ngua, enquanto protagonista de todo o processo, que responde por nossa possibilidade de futuro.<br /> <br /> <img src="/uploads/image/artigos_ricardo-conde_linguistica.jpg" alt="" width="60" hspace="3" height="80" align="left" /><br /> <br /> <br /> Por <i><b>Gustavo Conde</b></i>, lingu&iacute;stica<br />