UM DRIBLE AQUI, OUTRO ACOLÁ

03 de dezembro de 2020 às 18:42

Gaudêncio Torquato
O Brasil chega ao final do processo eleitoral, com o tira-teima em 57 cidades, sendo 18 capitais e 39 munic&iacute;pios com mais de 200 mil eleitores, desfraldando a bandeira de uma &ldquo;corrup&ccedil;&atilde;ozinha&rdquo;. Como? Isso mesmo. No momento mais cr&iacute;tico da atualidade, quando a m&iacute;dia e os &oacute;rg&atilde;os estatais de controle est&atilde;o varrendo o pa&iacute;s com suas lupas, 64 mil benefici&aacute;rios do aux&iacute;lio emergencial sacaram do bolso R$ 54,5 milh&otilde;es para doarem a candidatos no 1&ordm; turno. E quem apurou esse desvio foi o pr&oacute;prio Tribunal Superior Eleitoral.<br /> <br /> S&oacute; mesmo por aqui ocorre uma aberra&ccedil;&atilde;o dessas. Como o nome indica, o &ldquo;aux&iacute;lio emergencial&rdquo; se destina aos mais carentes, desprovidos de renda, um adjut&oacute;rio para que milh&otilde;es de pessoas consigam o m&iacute;nimo para sua sobreviv&ecirc;ncia e, mais ainda, numa quadra de pandemia que assola o territ&oacute;rio. A n&atilde;o ser que os &ldquo;doadores carentes&rdquo; tenham driblado os mapas do governo e, como aves de rapina, voaram direto para cima da ca&ccedil;a, no caso, o tal &ldquo;aux&iacute;lio emergencial&rdquo;, que j&aacute; custou ao governo este ano cerca de R$ 100 bilh&otilde;es. Em suma, as mamas do Estado continuam a fornecer &ldquo;leite&rdquo; aos bezerr&otilde;es da pol&iacute;tica.<br /> <br /> N&atilde;o por acaso, parcela ponder&aacute;vel do eleitorado vira as costas para a pol&iacute;tica, em um gesto que sinaliza desprezo, descr&eacute;dito, indigna&ccedil;&atilde;o. A absten&ccedil;&atilde;o, voto nulo e voto em branco s&atilde;o formas de protesto, que se somam ao natural receio de enfrentar as urnas nesse instante pand&ecirc;mico. Enquanto os horizontes da pol&iacute;tica n&atilde;o se tornarem claros, iremos empurrando as elei&ccedil;&otilde;es com o rolo compressor do senso comum, que clama por reformas, mudan&ccedil;as, avan&ccedil;os.<br /> <br /> Tais demandas prov&ecirc;m, sobretudo, das camadas mais esclarecidas, integrantes do painel da racionalidade, habitantes das grandes e m&eacute;dias cidades, cujo n&uacute;cleo central &eacute; composto por profissionais liberais. Esses segmentos s&atilde;o os mais sens&iacute;veis ao fen&ocirc;meno da &ldquo;fadiga de material&rdquo;, conceituado como satura&ccedil;&atilde;o de perfis antigos, feudos familiares, dom&iacute;nios eleitorais, passagem do bast&atilde;o entre figuras tradicionais. H&aacute; entre eles, vale reconhecer, pessoas de &oacute;tima &iacute;ndole e exemplar performance pol&iacute;tica. Mas a perman&ecirc;ncia por d&eacute;cadas na trajet&oacute;ria propicia a sensa&ccedil;&atilde;o de &ldquo;material gasto&rdquo;, pneu careca que n&atilde;o aguenta mais o tranco.<br /> <br /> &Eacute; imposs&iacute;vel trocar pneus com o carro rodando. Quer dizer, n&atilde;o &eacute; f&aacute;cil mudar a fei&ccedil;&atilde;o da pol&iacute;tica ou trocar o figurino dos protagonistas com as regras atuais do jogo. Por exemplo, o voto se torna cada vez mais distritalizado, a denotar interesse do eleitor em escolher algu&eacute;m que lhe seja pr&oacute;ximo ou perto de suas demandas locais/regionais. A proximidade entre pol&iacute;tico e eleitor integra a organicidade social, a tend&ecirc;ncia que se constata na forma&ccedil;&atilde;o de grupos, setores, &aacute;reas, movimentos. A sociedade, decepcionada com as promessas n&atilde;o cumpridas pela democracia &ndash; acesso &agrave; educa&ccedil;&atilde;o, seguran&ccedil;a, sa&uacute;de, transpar&ecirc;ncia dos governos, combate ao poder invis&iacute;vel- procura ref&uacute;gio em novos polos de poder.<br /> <br /> Portanto, temos de ver esse poder centr&iacute;peto &ndash; que se forma de l&aacute; para c&aacute;, das margens para o centro &ndash; abrindo espa&ccedil;os para protagonistas respirarem novos ares. A distritaliza&ccedil;&atilde;o &eacute; um fen&ocirc;meno mundial, a partir dos Estados Unidos, com seus votos de condados e distritos.<br /> <br /> Com o fim das coliga&ccedil;&otilde;es proporcionais, j&aacute; registramos forte enxugamento dos partidos na rede municipal. &Eacute; bem menor o n&uacute;mero de siglas, o que vir&aacute; refor&ccedil;ar a meta de sobreviv&ecirc;ncia de grandes e m&eacute;dios partidos e a extin&ccedil;&atilde;o de nanicos, muitos servindo de bengala a outros. Partido &eacute; parte, peda&ccedil;o, parcela. E n&atilde;o temos mais que cinco a sete divis&otilde;es de pensamento no Brasil, algo como extrema direita, direita, centro direita, centro, centro esquerda, esquerda e extrema esquerda.<br /> <br /> 2021, anterior ao pleito mais importante de nossa contemporaneidade, ser&aacute; bastante prop&iacute;cio para avan&ccedil;os na reforma pol&iacute;tica, sob a suposi&ccedil;&atilde;o que, antes dela, sejam aprovados aspectos essenciais das reformas tribut&aacute;ria e administrativa. A press&atilde;o social ser&aacute; intensa nos pr&oacute;ximos tempos, exatamente pelos fatores antes mencionados, como a decep&ccedil;&atilde;o com a pol&iacute;tica, a fadiga de material, a organicidade social e os novos polos de poder. Estamos cansados de ver Sisifu subindo a montanha com uma pedra sobre o ombro e v&ecirc;-la resvalar ao sop&eacute;. O cara jamais conseguir&aacute; coloc&aacute;-la no topo. Condena&ccedil;&atilde;o dos deuses.<br /> <br /> No nosso caso, temos esperan&ccedil;a que, um pouco adiante, consigamos fazer o necess&aacute;rio para elevar a grandeza do pa&iacute;s. At&eacute; porque Deus &eacute; um pouquinho&nbsp; brasileiro.<br /> <br /> <img src="/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Por <b><i>Gaud&ecirc;ncio Torquato</i></b>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o Twitter@gaudtorquato - Acesse o blog <a href="https://www.observatoriopolitico.org/" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><i><u>www.observatoriopolitico.org</u></i></span></a><br />