“Pensar e gerar um mundo aberto”

31 de dezembro de 2020 às 12:45

Lino Rampazzo
H&aacute; algumas semanas recebemos uma significativa mensagem de paz e de fraternidade. Trata-se da enc&iacute;clica &ldquo;Fratelli tutti&rsquo; (todos irm&atilde;os), do Papa Francisco, &ldquo;sobre a fraternidade e a amizade social&rdquo;. O documento est&aacute; dividido em oito cap&iacute;tulos, sendo o primeiro &ldquo;as sombras de um mundo fechado&rdquo;. Quais s&atilde;o essas sombras?<br /> &nbsp;<br /> Eis uma triste &ldquo;lista&rdquo;: o ego&iacute;smo, a falta de interesse pelo bem comum; a preval&ecirc;ncia de uma l&oacute;gica de mercado baseada no lucro e na cultura do descarte; o desemprego, o racismo, a pobreza; a desigualdade de direitos e as suas aberra&ccedil;&otilde;es, como a escravatura, o tr&aacute;fico de pessoas, as mulheres subjugadas e depois for&ccedil;adas a abortar, o tr&aacute;fico de &oacute;rg&atilde;os...<br /> &nbsp;<br /> Mais especificamente esse cap&iacute;tulo fala de &ldquo;sonhos desfeitos em peda&ccedil;os&rdquo;. Quais foram os &ldquo;sonhos&rdquo;? Durante d&eacute;cadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integra&ccedil;&atilde;o. Pense-se no sonho de uma Europa unida, capaz de reconhecer ra&iacute;zes comuns e regozijar-se com a diversidade que a habita; ou no anseio duma integra&ccedil;&atilde;o latino-americana (N. 10).<br /> &nbsp;<br /> Mas no mundo atual, esmorecem os sentimentos de perten&ccedil;a &agrave; mesma humanidade. Reina uma indiferen&ccedil;a acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilus&atilde;o que se esconde por detr&aacute;s desta ilus&atilde;o enganadora: considerar que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco (n. 30). <br /> &nbsp;<br /> O livro do Eclesiastes afirma que &ldquo;nada h&aacute; de novo debaixo do sol&rdquo; (1,9). Nesse sentido, podemos recorrer &agrave; hist&oacute;ria, que nos ensina sobre a &eacute;poca em que viveu S&atilde;o Francisco de Assis (1181-1226). Similarmente havia muitas divis&otilde;es, inclusive uma guerra de crist&atilde;os contra isl&acirc;micos: a &ldquo;quinta cruzada&rdquo; (1217-1221). Mas o santo escolheu um caminho diferente. Eis como o Papa Francisco relata esse fato na enc&iacute;clica citada: <br /> <br /> &ldquo;Na vida de S&atilde;o Francisco, h&aacute; um epis&oacute;dio que nos mostra o seu cora&ccedil;&atilde;o sem fronteiras, capaz de superar as dist&acirc;ncias de proveni&ecirc;ncia, nacionalidade, cor ou religi&atilde;o: &eacute; a sua visita ao Sult&atilde;o Malik-al-Kamil, no Egito. A mesma exigiu dele um grande esfor&ccedil;o, devido &agrave; sua pobreza, aos poucos recursos que possu&iacute;a, &agrave; dist&acirc;ncia e &agrave;s diferen&ccedil;as de l&iacute;ngua, cultura e religi&atilde;o. Aquela viagem, num momento hist&oacute;rico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do amor que queria viver, desejoso de abra&ccedil;ar a todos....Sem ignorar as dificuldades e perigos, S&atilde;o Francisco foi ao encontro do Sult&atilde;o com a mesma atitude que pedia aos seus disc&iacute;pulos: sem negar a pr&oacute;pria identidade, quando estiverdes &lsquo;entre sarracenos e outros infi&eacute;is (...), n&atilde;o fa&ccedil;ais lit&iacute;gios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus&rsquo;. No contexto de ent&atilde;o, era um pedido extraordin&aacute;rio. &Eacute; impressionante que, h&aacute; oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda a forma de agress&atilde;o ou contenda e tamb&eacute;m viver uma &lsquo;submiss&atilde;o&rsquo; humilde e fraterna, mesmo com quem n&atilde;o partilhasse a sua f&eacute;&rdquo; (N. 3). <br /> <br /> Com esse mesmo esp&iacute;rito, num dos seus escritos, S&atilde;o Francisco criou a express&atilde;o &ldquo;Fratelli tutti&rdquo; (todos irm&atilde;os) para propor uma forma de vida com &ldquo;sabor a Evangelho&rdquo;. E o Papa Francisco intitulou a enc&iacute;clica com essa express&atilde;o de S&atilde;o Francisco, dirigindo-se a todos os homens de boa vontade, para &ldquo;fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade&rdquo; (N. 8). <br /> <br /> A partir da par&aacute;bola do Bom Samaritano, o Papa afirma que &ldquo;o amor constr&oacute;i pontes e n&oacute;s somos feitos para o amor&quot;. Por isso precisa &ldquo;pensar e gerar um mundo aberto&quot;, promovendo a &quot;cultura do encontro&quot;, aberto ao mundo inteiro, inclusive aos migrantes, desenvolvendo uma &ldquo;pol&iacute;tica melhor&rdquo;, que representa uma das formas mais preciosas da caridade, porque est&aacute; a servi&ccedil;o do bem comum e conhece a import&acirc;ncia do povo. <br /> <br /> O Papa chega at&eacute; a citar um brasileiro, o poeta e cantor Vin&iacute;cius de Moraes quando, no &ldquo;Samba da B&ecirc;n&ccedil;&atilde;o&rdquo;, afirma que &quot;a vida &eacute; a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida&rdquo; (N. 205). E nos percursos de um encontro, o Papa sublinha que a paz &eacute; &quot;proativa&quot; e visa formar uma sociedade baseada no servi&ccedil;o aos outros e na busca da reconcilia&ccedil;&atilde;o e do desenvolvimento m&uacute;tuo, at&eacute; valorizando o perd&atilde;o. Perd&atilde;o, ele esclarece, n&atilde;o significa impunidade, mas justi&ccedil;a e mem&oacute;ria, porque perdoar n&atilde;o significa esquecer, mas renunciar &agrave; for&ccedil;a destrutiva do mal e da vingan&ccedil;a. A enc&iacute;clica termina mostrando que as Religi&otilde;es devem colocar-se a &ldquo;servi&ccedil;o da fraternidade no mundo&quot;. <br /> <br /> Os crist&atilde;os, juntamente com todos os homens de boa vontade, s&atilde;o chamados a construir um mundo diferente, que supere as divis&otilde;es pol&iacute;ticas, sociais, econ&ocirc;micas, religiosas e culturais.<br /> <br /> <img src="/uploads/image/artigos_lino-rampazzo_doutor-em-teologia.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> <br /> Por <i><b>Lino Rampazzo</b></i> &eacute; doutor em Teologia e Coordenador do Curso de Teologia da Faculdade Can&ccedil;&atilde;o Nova (Cachoeira Paulista-SP).