A VIDA É BREVE

31 de dezembro de 2020 às 12:48

Gaudêncio Torquato
S&ecirc;neca, o fil&oacute;sofo que nasceu em C&oacute;rdova, na Espanha, no ano I a.C, alertava: &ldquo;n&atilde;o &eacute; curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida &eacute; suficientemente longa e com generosidade nos foi dada, para a realiza&ccedil;&atilde;o das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferen&ccedil;a, quando n&atilde;o a empregamos em nada de bom, ent&atilde;o, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que j&aacute; passou por n&oacute;s sem que tiv&eacute;ssemos percebido. O fato &eacute; o seguinte: n&atilde;o recebemos uma vida breve, mas a fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores&rdquo;.<br /> <br /> Motivo-me, mais uma vez, a deixar de lado a an&aacute;lise pol&iacute;tica, tarefa cumprida na minha coluna semanal Porandubas, no site Migalhas, para percorrer o labirinto da consci&ecirc;ncia e tentar ver como deixei a vida passar sem ter percebido. E o que me leva a esse exerc&iacute;cio? A sensa&ccedil;&atilde;o de que, no meio (ou ainda no in&iacute;cio?) do furac&atilde;o desencadeado por esse medonho Covid-19, a vida pode me escapar num &aacute;timo de segundo, a mostrar que a eternidade est&aacute; ali, a um palmo na nossa frente.<br /> <br /> E como tenho percebido os dribles que, em alguns momentos, me fazem pensar que continuo portando o vigor da adolesc&ecirc;ncia, a capacidade mim&eacute;tica de me adaptar aos sabores e dissabores da vida? &Eacute; f&aacute;cil constatar. Basta ir ao espelho e ver que o tufo de cabelo encompridando a cabe&ccedil;a deu adeus, criando duas entradas profundas na testa e abrindo uma seca v&aacute;rzea no cocuruto. Ainda bem que a carequice n&atilde;o tem avan&ccedil;ado.<br /> <br /> Fossem essas observa&ccedil;&otilde;es est&eacute;ticas as &uacute;nicas maneiras de constatar que a adolesc&ecirc;ncia se escondeu no ba&uacute; de mem&oacute;rias, os sentimentos n&atilde;o seriam t&atilde;o doloridos. Mas h&aacute; vazios mais profundos. A percep&ccedil;&atilde;o de que eu poderia ter conversado mais com meu pai, que nasceu no final do final do s&eacute;culo XIX, foi autodidata, pol&iacute;tico, fazendeiro e, sobretudo, uma pessoa que acolhia bem os mais carentes. O sil&ecirc;ncio estava ali ao nosso redor, mesmo que ele tivesse mil perguntas a fazer ao filho que s&oacute; o via nas f&eacute;rias. Podia ter aprendido mais com ele naqueles tempos de muito trabalho, honra &agrave; palavra dada, compromisso com a verdade, zelo pelas coisas. Meu pai amolava a gilete com que se barbeava numa pedra sab&atilde;o. Objeto descart&aacute;vel? Jamais teve conhecimento.<br /> <br /> A amizade &eacute; a cola da fraternidade e da solidariedade. Os amigos fazem brotar os valores do compartilhamento e de uma sociedade mais convivencial. E o que ficou deles? A dist&acirc;ncia f&iacute;sica quebra elos, a rotina do cotidiano com muito trabalho cria oceanos entre os amigos, os la&ccedil;os de amizade v&atilde;o se esgar&ccedil;ando e se desmanchando. Percebo que deixei a vida se esvair por essas frestas de distanciamento, ao cortar contatos, ao esquecer nossos caminhos encruzilhados no passado, ao entrar na corrida pela competitividade, reconhecendo que essas decis&otilde;es podem ter corro&iacute;do a humanidade que nos habita.<br /> <br /> &ldquo;Olhe a r&eacute;gua, olhe a r&eacute;gua&rdquo;, sempre nos alertava o amigo Vanderlei, famoso neurocirurgi&atilde;o, natural da Para&iacute;ba e hoje tamb&eacute;m habitante destas plagas paulistas. E mostrava: at&eacute; aqui, a r&eacute;gua marca 50, apontando para o meio. Quando passa daqui, a r&eacute;gua costuma apressar o tempo. Pois n&atilde;o &eacute; que me lembro dessa r&eacute;gua quase todos os dias e vejo que o tempo corre? A vida &eacute; mesmo breve. Parece que o alerta da r&eacute;gua foi ontem. Mas faz mais de duas d&eacute;cadas. O que deixei mais de fazer?<br /> <br /> Ler mais. Sou um bom leitor de livros. Mas poderia ter usado o tempo com mais leituras, mais reflex&otilde;es. E a escrita? Ah, nessa &aacute;rea, sob minha absoluta cren&ccedil;a, tenho feito o poss&iacute;vel. A ponto de ser cobrado com juros e corre&ccedil;&atilde;o monet&aacute;ria pelo exerc&iacute;cio de ficar horas e horas &agrave; frente de um teclado de computador ou, nos idos de ontem, teclando numa velha m&aacute;quina de escrever. E que juros s&atilde;o esses? Uma coluna arrebentada, com achatamento e compress&atilde;o de v&eacute;rtebras, dores nas articula&ccedil;&otilde;es, enfim, essa heran&ccedil;a transmitida por ficar sentado numa cadeira o dia inteiro.<br /> <br /> Constrangido pela fatalidade, como diz o pux&atilde;o de orelhas de S&ecirc;neca, sinto que poderia ter sido mais comedido, com o bom senso de alternar os movimentos do corpo. As coisas ruins se passaram sem que tivesse percebido ou, mesmo percebidas, foram continuadas.<br /> <br /> Talvez seja por isso que os velhos &aacute;lbuns do passado tenham hoje tanta significa&ccedil;&atilde;o. Pois permitem que vejamos nossos corpos sem barrigas salientes, mais apol&iacute;neos e menos dionis&iacute;acos, tufo de cabelo na testa e sem jamais imaginar que, um dia, o danadinho de um v&iacute;rus fosse capaz de atazanar nossas vidas.<br /> &nbsp;<br /> <img src="https://www.novoeste.com/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> <br /> Por <i><b>Gaud&ecirc;ncio Torquato</b></i>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o - Acesse o blog <a href="https://www.observatoriopolitico.org/" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i>www.observatoriopolitico.org</i></u></span></a><br />