DEUSA DA LIBERDADE ESTÁ COM VERGONHA

11 de janeiro de 2021 às 11:42

Gaudêncio Torquato
Apaga-se uma tocha. Erguida na m&atilde;o direita da Est&aacute;tua da Liberdade, o s&iacute;mbolo plantado no rio Hudson h&aacute; 135 anos para iluminar o ide&aacute;rio da democracia americana recebeu uma carga de lama que acabou respingando sobre a Declara&ccedil;&atilde;o da Independ&ecirc;ncia dos Estados Unidos, que a deusa romana Libertas segura n&atilde;o m&atilde;o esquerda. 6 de janeiro de 2021 ficar&aacute; na hist&oacute;ria norte-americana como o mais triste dia de sua trajet&oacute;ria democr&aacute;tica. A deusa est&aacute; com vergonha.<br /> <br /> Nessa fat&iacute;dica data, o Capit&oacute;lio, sede da C&acirc;mara dos Representantes e do Senado, conhecido por ser um dos lugares mais guardados do planeta, foi invadido por manifestantes a&ccedil;ulados pelo (nada mais, nada menos) chefe do Executivo, o republicano Donald Trump, inconformado por ter perdido a elei&ccedil;&atilde;o para o democrata Joe Biden. A tocha apagada pela torpeza do chefe de Estado, o mais tosco pol&iacute;tico que j&aacute; habitou a Casa Branca, infelizmente ter&aacute; consequ&ecirc;ncias sobre as democracias do planeta, cujos protagonistas podem, mais cedo ou mais tarde, querer imitar a &iacute;ndole autorit&aacute;ria do bilion&aacute;rio americano.<br /> <br /> N&atilde;o h&aacute; como deixar de lembrar a pena do brilhante advogado franc&ecirc;s Alexis de Tocqueville que, aos 27 anos, escreveu em 1832 um dos mais belos livros do s&eacute;culo XIX, A Democracia na Am&eacute;rica, depois de ter passado uma temporada nos EUA para conhecer o sistema judici&aacute;rio. Assim registrava o esp&iacute;rito p&uacute;blico que viu: &ldquo;quando os povos ainda s&atilde;o simples nos seus costumes e firmes nas suas cren&ccedil;as, quando a sociedade repousa suavemente sobre uma ordem de coisas antigas, cuja legitimidade nunca &eacute; posta em d&uacute;vida, v&ecirc;-se reinar esse amor instintivo pela P&aacute;tria...amor que tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefin&iacute;vel que liga o cora&ccedil;&atilde;o do homem aos lugares onde nasceu&rdquo;.<br /> <br /> E o que pode explicar o terr&iacute;vel epis&oacute;dio que tirou a vida de quatro pessoas, obrigou senadores e deputados a ficarem de c&oacute;coras, permitindo que a matilha de c&atilde;es furiosos depredasse m&oacute;veis e espa&ccedil;os, chegando alguns a ocupar a mesa central do comando parlamentar? A ambi&ccedil;&atilde;o desmesurada. Cito em um dos meus livros o pensamento do cientista pol&iacute;tico Robert Lane que, em Political Life, explica como o excesso de ambi&ccedil;&atilde;o pelo poder funciona como um bumerangue. Diz: &quot;A fim de ser bem-sucedida em pol&iacute;tica, uma pessoa deve ter habilidades interpessoais para estabelecer rela&ccedil;&otilde;es efetivas com outras e n&atilde;o deve deixar-se consumir por impulsos de poder, a ponto de perder o contato com a realidade. A pessoa possu&iacute;da por um ardente e incontrol&aacute;vel desejo de poder afastar&aacute;, constantemente os que a apoiam, tornando, assim, imposs&iacute;vel a conquista do poder&quot;.<br /> <br /> Com o maior sistema democr&aacute;tico do planeta, como &eacute; reconhecido, os Estados Unidos acabam de ver amea&ccedil;ada esta posi&ccedil;&atilde;o, eis que n&atilde;o faltar&atilde;o aqueles dispostos a fazer mal&eacute;ficas compara&ccedil;&otilde;es. Um senador republicano, atentem bem, chegou a dizer que o pa&iacute;s dava o mesmo exemplo de uma &ldquo;Rep&uacute;blica de bananas&rdquo;. Os europeus est&atilde;o escandalizados. A Fran&ccedil;a, que fez a doa&ccedil;&atilde;o da Est&aacute;tua da Liberdade aos EUA, aduz que o s&iacute;mbolo mais vis&iacute;vel da democracia americana, seu presente fincado no porto de Manhattan, em Nova Iorque, j&aacute; n&atilde;o ser&aacute; visto como imaculado, sagrado, imune &agrave;s pedradas das hordas radicais. Boris Johnson, do Reino Unido, que parecia conservar certa amizade com Trump, chamou o epis&oacute;dio &ldquo;uma vergonha&rdquo;. &Acirc;ngela Merkel, da Alemanha, ficou &ldquo;triste e furiosa&rdquo;.<br /> <br /> J&aacute; o nosso Chefe de Estado garante que a cena da invas&atilde;o ao Congresso americano, caso o voto impresso n&atilde;o seja institu&iacute;do, pode ocorrer por aqui. E, sem provas, voltou a dizer que a elei&ccedil;&atilde;o nos EUA foi fraudada. &ldquo;Mortos votaram, foi uma festa l&aacute;.&rdquo; Ora, nenhuma Corte americana viu fraude. Trump, que tem menos de duas semanas no poder, ficou isolado dos pr&oacute;prios correligion&aacute;rios. E n&atilde;o contou com a simpatia das For&ccedil;as Armadas para sua tentativa de golpe. Por nossas plagas, nossas For&ccedil;as pautam-se por uma agenda profissional, fazendo lembrar o preceito: &ldquo;dai a C&eacute;sar o que &eacute; de C&eacute;sar e a Deus o que &eacute; de Deus&rdquo;.<br /> &nbsp;<br /> <img src="https://www.novoeste.com/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> <br /> Por<i><b> Gaud&ecirc;ncio Torquato</b></i>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o <br /> Acesse o blog <a href="https://www.observatoriopolitico.org/" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><i><u>www.observatoriopolitico.org</u></i></span></a><br /> <br /> <br />