OS HORIZONTES TURVOS DA DEMOCRACIA

22 de janeiro de 2021 às 10:37

Gaudêncio Torquato
O tema come&ccedil;a a frequentar os foros mais avan&ccedil;ados da democracia: a influ&ecirc;ncia da tecnologia e da intelig&ecirc;ncia artificial na esfera da pol&iacute;tica. O pressuposto central &eacute; o de que a personalidade de uma pessoa pode ser decifrada por processos de reconhecimento facial, que tem como base os estudos feitos por um controverso professor da Universidade Stanford, o polon&ecirc;s Michal Kosinski. A pol&ecirc;mica ganha intensidade desde a campanha americana de 2016, a da elei&ccedil;&atilde;o de Donald Trump, que teria usado algoritmos extra&iacute;dos de fei&ccedil;&otilde;es para identificar a orienta&ccedil;&atilde;o pol&iacute;tica de eleitores. E, a partir da&iacute;, influenci&aacute;-los com intensas cargas de conte&uacute;dos.<br /> <br /> &Agrave; sombra dessa hip&oacute;tese, como pano de fundo, desenham-se imensos pain&eacute;is que tratam da crise da democracia, do conflito recorrente entre o escopo do liberalismo e o ide&aacute;rio democr&aacute;tico (podem conviver ou tendem a se afastar?), os sistemas partid&aacute;rios e seus caminhos pelo centro, pela esquerda ou pela direita, o nacional-populismo, com seu movimento de vaiv&eacute;m.<br /> <br /> Bobbio, em seu cl&aacute;ssico O Futuro da Democracia, faz um alerta: &ldquo;o pensamento liberal continua a renascer, inclusive sob formas capazes de chocar pelo seu car&aacute;ter regressivo, e de muitos pontos de vista ostensivamente reacion&aacute;rio, porque est&aacute; fundado sobre uma concep&ccedil;&atilde;o filos&oacute;fica da qual, agrade ou n&atilde;o, nasceu o mundo moderno: a concep&ccedil;&atilde;o individualista da sociedade e da hist&oacute;ria. Concep&ccedil;&atilde;o com a qual a esquerda jamais fez seriamente um acerto de contas&rdquo;. O fil&oacute;sofo italiano preocupava-se com o desmantelamento do estado assistencial.<br /> <br /> N&atilde;o por acaso, o nacional-populismo tem expandido seus la&ccedil;os, fazendo emergir no palco da pol&iacute;tica figuras estramb&oacute;ticas, impregnadas dos ideais de defesa de suas P&aacute;trias contra &ldquo;invas&otilde;es alien&iacute;genas&rdquo;, nesse caso os imigrantes, acusados de sugar riquezas nacionais, de aumentar a desigualdade e contribuir para avolumar os &iacute;ndices de inseguran&ccedil;a p&uacute;blica. Com este discurso, tocam fundo no cora&ccedil;&atilde;o de uma &ldquo;supremacia branca&rdquo;, esta que se mostra capaz de amea&ccedil;ar a estabilidade dos pa&iacute;ses democr&aacute;ticos.<br /> <br /> Essa &eacute; a moldura sobre a qual se projetam as ferramentas da tecnologia e da intelig&ecirc;ncia artificial. Ou seja, pelo andar da carruagem, a impress&atilde;o &eacute; a de que o planeta caminha celeremente na trilha do Grande Irm&atilde;o, o Big Brother, com seus olhos vigiando todos e tudo, extraindo insumos, dados e informa&ccedil;&otilde;es para alimentar os protagonistas do nacional-populismo, refor&ccedil;ando seus poderes, criando em torno deles a figura do mito e puxando a sociedade para os dom&iacute;nios do autoritarismo. Essa caminhada ter&aacute; muito f&ocirc;lego, n&atilde;o sendo coisa passageira, exatamente pelo quadro de deteriora&ccedil;&atilde;o que corr&oacute;i democracias.<br /> <br /> N&atilde;o se chegou, ainda, ao ponto de equil&iacute;brio, pois os espa&ccedil;os do arco ideol&oacute;gico se imbricam e se confundem, a ponto de n&atilde;o se saber mais como caracterizar os sistemas pol&iacute;ticos: Sociais-Democr&aacute;ticos? Socialistas? Comunistas? Esquerdistas com certo vi&eacute;s democr&aacute;tico? Direitistas conservadores em defesa de valores tradicionais? Capitalistas de Estado como a China? (Que coisa esquisita essa mimese camale&ocirc;nica que mescla Estado Autorit&aacute;rio com Estado Democr&aacute;tico de Direito, base do sistema capitalista).<br /> <br /> Sobre esse espectro trabalha a engenharia da intelig&ecirc;ncia artificial, cujos impactos sobre a pol&iacute;tica s&atilde;o imprevis&iacute;veis. Imagine Fulano da Silva, andando no meio da multid&atilde;o, apressado para n&atilde;o perder o compromisso, sendo capturado por milhares de micro-c&acirc;meras, que pin&ccedil;am seu estado d&rsquo;alma, preparando-o para se transformar em um &ldquo;mutante pol&iacute;tico&rdquo;? Esse retrato se parece com o quadro pintado por George Orwell no romance Big Brother, de 1984. Entra novamente na mesa de debates o criminalista italiano Cesare Lombroso, defensor da ideia de que criminosos podem ser identificados por suas caracter&iacute;sticas f&iacute;sicas. A tese lombrosiana, recha&ccedil;ada por muitos, agora recebe o impulso da tecnologia. Que tempos estranhos.<br /> <br /> O tema volta a esquentar os &acirc;nimos nesse momento em que a maior democracia ocidental, os EUA, padece do assalto ao Capit&oacute;lio, em Washington, evento que abala a confian&ccedil;a da sociedade sobre a capacidade do pa&iacute;s suportar a ascens&atilde;o de pol&iacute;ticos batizados nas &aacute;guas da imponderabilidade.<br /> <br /> O fato &eacute; que, a cada dia, os horizontes democr&aacute;ticos s&atilde;o cobertos por nuvens escuras.<br /> &nbsp;<br /> <img src="https://www.novoeste.com/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> <br /> Por <b><i>Gaud&ecirc;ncio Torquato</i></b>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o - Acesse o blog <a href="https://www.observatoriopolitico.org/" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i>www.observatoriopolitico.org</i></u></span></a><br />