NA COVA DAS LAGOSTAS

24 de fevereiro de 2021 às 11:38

Dartagnan da Silva Zanela
J&aacute; faz algum tempo, creio que uns doze anos, que um velho amigo meu, chamado Daniel, havia me contato uma historieta que circulava no meio habitado pelos &ldquo;sinh&ocirc;s dot&ocirc;s&rdquo;. A historieta era mais ou menos assim: em algum lugar da vastid&atilde;o celeste havia um anjo que estava um tanto acabrunhado. Um serafim, vendo-o em agonia, chegou junto dele para assuntar. &ldquo;Salve Anjo velho&rdquo;! &ldquo;Salve seu Querubim&rdquo;. &ldquo;Por que voc&ecirc; est&aacute;, assim, t&atilde;o apoquentado, arrastando as asas&rdquo;? &ldquo;Voc&ecirc; n&atilde;o viu&rdquo;? &ldquo;N&atilde;o vi o qu&ecirc;&rdquo;? &ldquo;Deus&rdquo;! &ldquo;O que tem Ele&rdquo;? &ldquo;Ele anda se achando demais, voc&ecirc; n&atilde;o acha&rdquo;? &ldquo;U&eacute;, mas Ele &eacute; Ele. Onipotente, Onisciente, Onipresente&rdquo;. &ldquo;N&atilde;o, mas Ele est&aacute; diferente. Est&aacute; se achando demais&rdquo;. &ldquo;Como assim&rdquo;? &ldquo;Ele est&aacute; pensando que &eacute; um Ministro do STF&rdquo;.<br /> &nbsp;<br /> Na &eacute;poca, quando meu querido amigo havia me contado esse gracejo, n&atilde;o havia achado que o causo fosse, assim, t&atilde;o engra&ccedil;ado; hoje, menos ainda, tendo em vista todos os acontecimentos que envolveram o Deputado Federal Daniel Silveira que, por sua vez, foi a cereja do bolo p&uacute;trido confeitado com as in&uacute;meras estripulias, pol&iacute;ticas e jur&iacute;dicas, que vinham sendo feitas por alguns lagost&iacute;ssimos togados.<br /> &nbsp;<br /> E vejam s&oacute;: n&atilde;o &eacute; uma quest&atilde;o de concordarmos com o que o referido parlamentar declarou, nem de assinarmos embaixo das palavras que ele parlou. A quest&atilde;o &eacute; acharmos bonito e democr&aacute;tico calarmos algu&eacute;m porque simplesmente temos meios para fazer isso &agrave; margem do bom senso e ao arrepio da lei.<br /> &nbsp;<br /> E lembremos de uma coisa important&iacute;ssima: o fato de n&atilde;o concordarmos com algu&eacute;m, ou de sentirmo-nos indignados com o que algu&eacute;m declara n&atilde;o nos autoriza calar o autor das opini&otilde;es das quais divergimos e que, porventura, possam nos causar indigna&ccedil;&atilde;o (excetuando, &eacute; claro, os casos previstos em lei). Ali&aacute;s, j&aacute; pensou se Deus agisse tal qual um lagost&iacute;ssimo ministro do STF frente &agrave;s in&uacute;meras ofensas que s&atilde;o proferidas contra Ele? J&aacute; pensou nisso? &Eacute; por isso que, como disse o Papa Francisco no primeiro dia do seu pontificado, o mundo s&oacute; existe por causa da miseric&oacute;rdia de Deus.<br /> &nbsp;<br /> Voltando ao ponto, n&atilde;o precisamos concordar com cada uma das palavras que o senhor Silveira disse em seu v&iacute;deo para defender o direito dele se manifestar; tamb&eacute;m n&atilde;o &eacute; necess&aacute;rio que apreciemos a forma como ele fez isso.&nbsp; Na verdade, devemos defender o direito de ele dizer o que pensa justamente por n&atilde;o concordarmos com todas as palavras que ele proferiu e por n&atilde;o nos sentirmos confort&aacute;veis com a forma como ele o fez, principalmente os lagost&iacute;ssimos togados deveriam garantir que ele, o deputado, pudesse fazer o que fez, pois, tal garantia, em &eacute;pocas um pouco mais divertidas, era entendida como liberdade de express&atilde;o.<br /> &nbsp;<br /> E o engra&ccedil;ado &eacute; que a &uacute;nica coisa que se fala na grande m&iacute;dia &eacute; que o tal deputado, que mais parece um cosplay careca do Conan, teria realizado um &ldquo;ato antidemocr&aacute;tico&rdquo; por meio de um &ldquo;discurso de &oacute;dio&rdquo;.<br /> &nbsp;<br /> Pois &eacute;. Sempre a mesma lenga-lenga. Uma lenga-lenga calculada para censurar todo e qualquer desafeto pol&iacute;tico, calando-os e fazendo-os parecer criminosos por terem dito o que supostamente n&atilde;o deveriam ter sido dito.<br /> &nbsp;<br /> Abre um par&ecirc;ntese. Seja como for, seja onde for, um censor que se preze sempre faz o censurado parecer um transgressor, uma pessoa odienta, abjeta e perigos&iacute;ssima. Fecha par&ecirc;ntese.<br /> &nbsp;<br /> Mas h&aacute; algo que foi dito pelo deputado que, penso eu, deveria ser destacado, mas n&atilde;o o foi. Ele desafiou os lagost&iacute;ssimos togados. Desafiou-os n&atilde;o para um duelo, nem para uma queda de bra&ccedil;o, muito menos para uma luta de MMA. Ele os desafiou para um debate sobre direito e filosofia do direito. Fato esse que foi varrido para debaixo do tapete midi&aacute;tico, todavia, seria interessante ver um deputado e um ministro, com &ldquo;not&oacute;rio saber jur&iacute;dico&rdquo;, cara a cara, sem assessores e sem cortes, debatendo algo.<br /> &nbsp;<br /> E tem outra: se eu fosse um parlamentar &ndash; e, gra&ccedil;as ao bom Deus, eu n&atilde;o sou &ndash; teria destacado esse fato na tribuna do Congresso Nacional e, principalmente, teria lembrado que os supremos, ao que parece, preferem trocar &quot;figurinhas democr&aacute;ticas e iluministas&quot; com o Felipe Neto.<br /> &nbsp;<br /> Diante disso, sou obrigado a concordar com Lula, quando esse senhor havia dito que os membros da Suprema Corte s&atilde;o todos acovardados. &Eacute; Lula. Voc&ecirc; estava e est&aacute; certo.<br /> &nbsp;<br /> Outra coisa que poderia ser feita: uns duzentos, ou trezentos deputados federais, e mais uns pares de deputados estaduais, poderiam, como sugeriu o escritor Fl&aacute;vio Morgenstern, gravar um v&iacute;deo lendo um texto, com as mesm&iacute;ssimas palavras que foram ditas pelo deputado Conan Daniel, s&oacute; pra ver se os lagost&iacute;ssimos iriam prend&ecirc;-los tamb&eacute;m, democraticamente, com um &quot;mandado de pris&atilde;o em flagrante&rdquo; com base na Lei de Seguran&ccedil;a Nacional, agindo ao mesmo tempo como v&iacute;tima, acusador e julgador. Pois &eacute;. Mas isso n&atilde;o aconteceu e, creio eu, n&atilde;o acontecer&aacute;.<br /> &nbsp;<br /> E, mais uma vez, digo e repito, que n&atilde;o preciso concordar com tudo que o senhor Daniel Silveira disse, nem aprovar o que ele fez para defender o direito que ele tem de diz&ecirc;-lo e faz&ecirc;-lo, mas &eacute; preciso ser muito caipora para ficar batendo palminha para essa opereta bufa que foi armada pela suprema tirania federal dos vetustos crust&aacute;ceos dec&aacute;podes.<br /> &nbsp;<br /> Por fim, certa feita o escritor italiano Luigi Pirandello havia indagado: vassunc&ecirc; tem ideia de quanto mal n&oacute;s fazemos por causa dessa maldita necessidade de falar? N&atilde;o sei. Mas n&atilde;o deve ser pouca coisa n&atilde;o. Por&eacute;m, esse mal &eacute; muit&iacute;ssimo menor do que a desgra&ccedil;a que &eacute; causada por essa amaldi&ccedil;oada mania de silenciar a voz outrem, ao som das palmas que s&atilde;o batidas para festejar o ato de calar.<br /> &nbsp;<br /> Escrevinhado por <i><b>Dartagnan da Silva Zanela</b></i>