A ESTAMPA DA MALANDRAGEM

24 de fevereiro de 2021 às 11:46

Gaudêncio Torquato
A malandragem que se credita ao DNA brasileiro tem sido usada intensamente nesses tempos de epidemia. Os casos s&atilde;o de arrepiar. Em Manaus, duas irm&atilde;s g&ecirc;meas, filhas de um empres&aacute;rio do ramo da educa&ccedil;&atilde;o, foram exoneradas da Prefeitura por suspeita de terem furado a fila da vacina&ccedil;&atilde;o. Formadas em medicina no ano passado, nomeadas entre 18 e 19 de janeiro para trabalhar numa Unidade B&aacute;sica de Sa&uacute;de, foram as primeiras a receber as vacinas. No Rio de Janeiro, uma idosa de 97 anos foi enganada: a enfermeira foi flagrada pela cuidadora, que viu a agulha sem a dose da vacina no bra&ccedil;o da mulher. A malandragem campeia.<br /> <br /> Furar filas tem sido um comportamento usual por parte de muita gente. Como pano de fundo, como se sabe, os not&oacute;rios &ldquo;furadores&rdquo;, aqueles que ostentam o poder do cargo, autoridades de todos os n&iacute;veis especializados na &ldquo;carteirada&rdquo; com sua arrog&acirc;ncia: &ldquo;voc&ecirc; sabe com quem est&aacute; falando?&rdquo; A situa&ccedil;&atilde;o &eacute; t&atilde;o comum que, em alguns casos, tornou-se um neg&oacute;cio. Filas para emprego, recebimento de benef&iacute;cios, cestas de alimentos, compras de ingresso, que se iniciam nas madrugadas, s&atilde;o frequentemente ocupadas por &ldquo;guardadores de vaga&rdquo;, com seus banquinhos para sentar e aguardar os fregueses que &ldquo;compram&rdquo; o lugar. Quanto mais pr&oacute;ximos do atendimento, mais caros os espa&ccedil;os.<br /> <br /> Outro imenso contingente que vive dos neg&oacute;cios da rua &eacute; o do guardador de vaga para estacionamento. &Eacute; o malandro profissional. Se chegar em cima da hora do evento, o dono do carro n&atilde;o tem sa&iacute;da: submete-se ao orientador das vagas, estaciona o carro e paga com anteced&ecirc;ncia. O vendedor n&atilde;o aceita o argumento: &ldquo;pagarei na volta&rdquo;. Nos arredores de est&aacute;dios de futebol e parques de lazer, n&atilde;o h&aacute; moleza. Se n&atilde;o pagar, na volta seu carro corre o risco de depreda&ccedil;&atilde;o. Estacionamento para deficientes e idosos tamb&eacute;m entra na negocia&ccedil;&atilde;o, mesmo que o motorista mostre Cart&atilde;o do Defis, que d&aacute; direito ao uso da vaga. H&aacute;, ainda, os vendedores de capas pl&aacute;sticas. Chuvas pesadas garantem pre&ccedil;o bem maior que nos chuviscos.<br /> <br /> Na paisagem urbana, h&aacute; um grupo que n&atilde;o pode se classificar como malandro. S&atilde;o os vendedores de balas e chicletes, que precisam correr para colocar os pacotes sobre vidros retrovisores, apanh&aacute;-los de volta, calculando o tempo para a troca de farol e fazendo pitorescos dribles para passar adiante as balinhas. S&atilde;o azucrinados pelas buzinas dos carros de tr&aacute;s. Muitos levam filhos pequenos para ajudar na jornada.<br /> <br /> O fato &eacute; que a est&eacute;tica de nossas ruas &eacute; um desenho mal-ajambrado de pequenos e grandes malandros, e tamb&eacute;m de pessoas necessitadas, esmoleres, deficientes f&iacute;sicos, famintos com cartazes anunciando o tempo de barriga vazia, adolescentes dando pinotes, jogando bolas para o ar, fazendo piruetas incr&iacute;veis, e at&eacute; gente de porte atl&eacute;tico pedindo &ldquo;emprego&rdquo;, esse sonho que atanaza a vida de quase 15 milh&otilde;es de brasileiros.<br /> <br /> E, como fecho, a malandragem tecnol&oacute;gica. Um Instituto de Pesquisa americano (Cibersecurity Ventures) calcula que os crimes digitais este ano impactar&atilde;o a economia cibern&eacute;tica em U$ 6 trilh&otilde;es. S&oacute; a China e os EUA t&ecirc;m um PIB maior que esse montante. A malandragem tem um campo f&eacute;rtil para prosperar por aqui.<br /> <br /> O cen&aacute;rio do &ldquo;jeitinho brasileiro&rdquo; est&aacute; ganhando novas tintas. Sob a pandemia, a criatividade avulta at&eacute; junto aos moradores de rua, que passam a se esconder em lugares rec&ocirc;nditos. Pedintes ganham moedas tendo ao lado um frasco de &aacute;lcool gel. Distribuidores de folhetos, com seus ma&ccedil;os encalhados, tamb&eacute;m exibem seu apetrecho de &aacute;lcool, atenuando o receio dos transeuntes. Limites e espa&ccedil;os se estreitam. E nossa margem de caridade desce na escala espiritual.<br /> <br /> Os contrastes assombram. Grupos empresariais passam por extraordin&aacute;rios aumentos em seus lucros l&iacute;quidos. O cimo da pir&acirc;mide fica mais poderoso, enquanto a base se alarga com a volta de milh&otilde;es de fam&iacute;lias ao habitat da pobreza.<br /> <br /> O arremate &eacute; desolador: a pandemia nos deixar&aacute; mais carentes e o pa&iacute;s ver&aacute; uma queda de mais de 4% de seu PIB. E para onde vai nossa f&eacute;? Fernando Sabino, grande escritor, nos consola: &ldquo;de tudo ficam tr&ecirc;s coisas...a certeza de que estamos come&ccedil;ando...a certeza de que &eacute; preciso continuar...a certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar. Fa&ccedil;amos da interrup&ccedil;&atilde;o um caminho novo. Da queda, um passo de dan&ccedil;a. Do medo, uma escada. Do sonho, uma ponte&rdquo;.<br /> &nbsp;<br /> <img src="/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" alt="" width="60" hspace="3" height="80" align="left" /><br /> <br /> Por <i><b>Gaud&ecirc;ncio Torquato</b></i>, jornalista, &eacute; professor titular da USP, consultor pol&iacute;tico e de comunica&ccedil;&atilde;o - Acesse o blog <a href="https://www.observatoriopolitico.org/" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i>www.observatoriopolitico.org</i></u></span></a>