A cidade em pânico

23 de março de 2021 às 10:48

Juarez Cruz
Hoje &eacute; um domingo at&iacute;pico, diferente de muitos domingos que vi neste mesmo per&iacute;odo de 2021 e de todos os anos anteriores. Acordei cedo, &agrave;s 06h30, e o sol j&aacute; dava sinal de como seria quente ao longo do dia. Olhei o celular para ver se a mensagem que estava aguardando havia chegado e nem sinal. Apresei-me em vestir um short e cal&ccedil;ar o t&ecirc;nis, pois n&atilde;o poderia chegar atrasado para a caminhada que havia marcado com uma amiga depois de cerca de noventa dias sem fazer uma atividade f&iacute;sica.<br /> <br /> O celular toco e apressei em atend&ecirc;-lo<br /> <br /> -Al&ocirc;, al&ocirc; !!!<br /> <br /> -J&aacute; est&aacute; saindo- era Dora querendo saber onde eu estava.<br /> <br /> -J&aacute; estou a caminho.<br /> <br /> -Olha Juca, minha filha teve uma ins&ocirc;nia por causa da sinusite dela e por causa disso n&atilde;o dormir bem. Vamos deixar esta caminhada para outro dia.<br /> <br /> -Sem problema Dora. V&aacute; descansar e qualquer coisa que precisar me d&ecirc; um toque. <br /> <br /> -Obrigada, voc&ecirc; &eacute; um anjo-disse ela carinhosamente, como sempre.<br /> <br /> - Nos vemos depois, voc&ecirc; &eacute; especial.<br /> <br /> Como j&aacute; estava pronto para a caminhada, resolvi sair e fazer o trajeto sozinho e assim o fiz.<br /> Antes de sair coloquei uma m&aacute;scara no bolso, caso precisasse us&aacute;-la para entrar em algum estabelecimento comercial e comecei minha caminhada entre a orla do Rio Vermelho e Pituba. Salvador est&aacute; literalmente deserta, quase desabitada.<br /> <br /> Logo nos primeiros metros de minha caminhada vejo dois policiais usando m&aacute;scaras, conversando defronte a entrada de um hotel. Passei por eles e logo em seguida um grupo de ciclistas, todos usando m&aacute;scara, pedalavam ofegantes pela ciclovia. Confesso que achei estranho ciclista pedalar usando m&aacute;scara, mas segui em frente. <br /> <br /> Como n&atilde;o estava a fim de caminhar sozinho, parei na frente de um pr&eacute;dio onde mora um amigo meu, gritei seu nome pr&oacute;ximo da janela de seu apartamento e ele parecia estar dormindo, foi o que constatei mais tarde. Segui na minha caminhada tentando ver o que n&atilde;o conseguia ver quando estava dirigindo e vi muitas coisas. Vi casas comerciais e apartamentos fechados com placas de aluga-se ou vende-se. Vi pessoas andando na rua, apressadas, assustadas, como se fugissem de um inimigo invis&iacute;vel e outras perambulando entre lixeiras a procura de algo para comer para n&atilde;o morrerem de fome. Vi o que, possivelmente, j&aacute; via todos os dias e, de tanto ver, voc&ecirc; termina banalizando o olhar e acaba n&atilde;o vendo o que est&aacute; bem a sua frente, no seu caminho.<br /> <br /> &ldquo;Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. O poeta &eacute; s&oacute; isto: um certo modo de ver. O diabo &eacute; que, de tanto ver, agente banaliza o olhar. V&ecirc; n&atilde;o-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que voc&ecirc; v&ecirc; todo dia, sem ver. Parece F&aacute;cil, mas n&atilde;o &eacute;. O que nos cerca, o que nos &eacute; familiar, j&aacute; n&atilde;o desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina &eacute; como um vazio&rdquo;. Otto Lara Resende, F.de S. Paulo(23/02/92)<br /> <br /> A cidade estava em Lockdown decretado pelo prefeito e o com&eacute;rcio quase todo fechado, exceto farm&aacute;cias e supermercados. O povo parecia aceitar passivamente a determina&ccedil;&atilde;o governamental, inclusive a obriga&ccedil;&atilde;o de usar &aacute; m&aacute;scara, que a usava at&eacute; para dirigir, correr, pedalar e pescar. Um absurdo.<br /> <br /> Quando cheguei pr&oacute;ximo &aacute; praia da Amaralina, uma cena bizarra chamou minha aten&ccedil;&atilde;o, vi pescadores sentados ao lado de suas varas de pescar docilmente usando m&aacute;scaras, a espera do sinal que a vara d&aacute; quando o peixe fisga a isca espetada no anzol no fundo mar. Intrigado e procurando entender o motivo do uso das m&aacute;scaras por eles, quase dentro do mar, parei minha caminhada e fiquei observando-os sem conseguir ver quais riscos que eles representavam para a propaga&ccedil;&atilde;o da pandemia. &nbsp;<br /> <br /> Logos atr&aacute;s de mim uma pequena carreata formada de tr&ecirc;s viaturas da prefeitura, duas viaturas da guarda municipal e duas viaturas da policia militar, passavam lentamente como se procurassem algo, talvez algum estabelecimento comercial aberto para fechar, multar e prender seu propriet&aacute;rio, ou talvez um vendedor de picol&eacute; ou de &aacute;gua de coco para tomar sua mercadoria e jogar o ambulante dentro de uma viatura acusando-os de &ldquo;desacato de autoridade&rdquo;, &eacute; o que eles sempre alegam para cometer trucul&ecirc;ncias e abuso de autoridade na hora da pris&atilde;o. &Eacute; a estrutura do Estado policial para suprimir e reprimir quem n&atilde;o cumpre &aacute;s determina&ccedil;&otilde;es impostas para pelos governantes. <br /> <br /> Enquanto o aparato policial passava, alguns transeuntes que n&atilde;o usavam a m&aacute;scara se apressavam em coloc&aacute;-las e vi o p&acirc;nico estampados em seus rostos. Uma fam&iacute;lia de banhista saia rapidamente da areia, amedrontada, caminhando na dire&ccedil;&atilde;o contr&aacute;ria dos policiais ante os protestos dos dois filhos menores que n&atilde;o entendiam &aacute; repentina mudan&ccedil;a de planos de seus pais. <br /> <br /> Indignado com tal situa&ccedil;&atilde;o continuei minha caminhada e logo adiante vi, para meu espanto, que outros pescadores jogando suas redes ao mar tamb&eacute;m usavam m&aacute;scara. Mais outro absurdo. <br /> <br /> Ao longo da cal&ccedil;ada que circundava &aacute;s praias da Amaralina e Pituba, vi mais ciclistas, atletas maratonistas e muitos andarilhos como eu, quase todos usando m&aacute;scaras. Alguns vinham no sentido contr&aacute;rio se esquivavam de mim como se eu representasse algum perigo pra eles s&oacute; porque n&atilde;o usava a m&aacute;scara; outros me olhavam com alguma estranheza, recrimina&ccedil;&atilde;o e cochichavam entre eles. Confesso que estava me sentindo vigiado, como um estranho no ninho, um alien&iacute;gena que n&atilde;o conhece as regras de condutas impostas na terra e que deveria ser evitado, discriminado por eles e talvez denunciado ao poder p&uacute;blico estatal para um poss&iacute;vel confinamento correcional, como na Alemanha, em 1934, quando os nazistas institucionalizaram &aacute; viol&ecirc;ncia, prendendo arbitrariamente e executando inimigos pol&iacute;ticos: comunistas, lideres esquerdistas e sindicalistas, induzindo seus seguidores(como acontece hoje no Brasil de Bolsonaro contra quem n&atilde;o reza pela sua cartilha) &aacute; ca&ccedil;a e persegui&ccedil;&atilde;o dos judeus, ciganos, homossexuais e opositores do regime. <br /> <br /> Sentei no banco da pra&ccedil;a para tomar um pouco de ar depois de quase uma hora de dura caminhada quando ouvi algu&eacute;m gritar meu nome:<br /> <br /> -Juca, cad&ecirc; a sua m&aacute;scara, cara!-Olhei rapidamente e vi Barbosinha, um companheiro de boteco, com o corpo quase para fora do carro acenando na minha dire&ccedil;&atilde;o.<br /> <br /> N&atilde;o sei se ele estava sozinho no carro mais vi que tamb&eacute;m usava a mascara e foi a partir dai que passei a observar outros motoristas, dentro de seus carros, fazendo uso das m&aacute;scaras, e pior, alguns deles sozinhos, com o carro em movimento e fechado. Inacredit&aacute;vel o medo das pessoas.<br /> <br /> Confesso que j&aacute; vi de tudo nesta minha vida, mas obedi&ecirc;ncia cega, total subservi&ecirc;ncia da popula&ccedil;&atilde;o aos ditames impostos pelos governantes, com a complac&ecirc;ncia e desinforma&ccedil;&atilde;o praticada por parte da imprensa, tamb&eacute;m partid&aacute;ria, e das redes sociais, isso nunca tinha visto, nem a &eacute;poca da ditadura. <br /> <br /> Ainda sentado na pra&ccedil;a fiquei olhando os pais caminhando com suas crian&ccedil;as que n&atilde;o podiam dar seu grito de guerra, correr pela pra&ccedil;a atr&aacute;s dos pombos que ciscam o ch&atilde;o e que s&atilde;o os que verdadeiramente est&atilde;o em liberdade, usufruindo de seu livre arb&iacute;trio; livres das restri&ccedil;&otilde;es governamental e de sua guarda pretoriana sempre atenta aos movimentos da popula&ccedil;&atilde;o e da persegui&ccedil;&atilde;o das crian&ccedil;as que parecem amorda&ccedil;adas e imobilizadas atr&aacute;s de suas m&aacute;scaras. Diante deste quadro dantesco, imaginei o quanto o povo est&aacute; controlado pelo Estado, situa&ccedil;&atilde;o an&aacute;loga a de um regime de exce&ccedil;&atilde;o, totalit&aacute;rio, imposto pelos governantes que imp&otilde;e regras de controle sobre a popula&ccedil;&atilde;o, fechando o com&eacute;rcio e causando a fal&ecirc;ncia dos propriet&aacute;rios, respaldados por uma corte do Supremo Tribunal Federal(STF) partid&aacute;ria e pouco confi&aacute;vel, que tomou esta medida apenas para se contrapor ao presidente Jair Bolsonaro(sem partido). <br /> <br /> N&atilde;o tenho nenhuma d&uacute;vida que a cidade est&aacute; em p&acirc;nico, sitiada ante a inercia do governo federal que nega toda e qualquer medida de controle preconizada pela OMS, pelos m&eacute;dicos e pesquisadores como manter o distanciamento social, uso de mascaras e a aplica&ccedil;&atilde;o da vacina&ccedil;&atilde;o em massa como forma de proteger o povo e combater &aacute; propaga&ccedil;&atilde;o do Covid-19. Pra agravar esta situa&ccedil;&atilde;o de p&acirc;nico, Bolsonaro frequentemente desdenha do risco que a pandemia representa, quando incentiva o povo a n&atilde;o usar a m&aacute;scara, fomenta aglomera&ccedil;&otilde;es na frente do Pal&aacute;cio da Alvorada ou em encontros com apoiadores em visitas &aacute;s cidades do interior do Brasil, num gesto de total indiferen&ccedil;a as cerca de 290mil mortes, incluindo ai centenas de profissionais de sa&uacute;de e de seguran&ccedil;a p&uacute;blica, como se essa trag&eacute;dia anunciada n&atilde;o significasse nada, n&atilde;o tivesse nenhuma import&acirc;ncia para ele. &ldquo;&Eacute; uma gripezinha&rdquo;, disse ele certa vez.<br /> &nbsp;<br /> Agora s&atilde;o dez horas e o sol est&aacute; come&ccedil;ando &aacute; ficar muito quente e tenho que ir embora. Mais pessoas andam na cal&ccedil;ada como son&acirc;mbulos num desfile de m&aacute;scaras coloridas e rid&iacute;culas que moldam seus rostos, camuflam suas vozes, inibindo suas rea&ccedil;&otilde;es, sentimentos e vontades. Todos perfeitamente controlados por um Estado corrupto, inerte e insens&iacute;vel diante da trag&eacute;dia humana que se avizinha.<br /> &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; &nbsp;<br /> Por <i><b>Juarez Cruz</b></i>, escritor e cronista<br /> <a href="http://mailto:juarez.cruz@uol.com.br" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i>juarez.cruz@uol.com.br</i></u></span></a><br />