Reorganizando nossas vidas

14 de abril de 2021 às 15:39

Gaudêncio Torquato
Imaginem a afli&ccedil;&atilde;o de um n&aacute;ufrago &agrave; procura de uma t&aacute;bua de salva&ccedil;&atilde;o, qualquer coisa para agarrar no meio do oceano. O desespero de fam&iacute;lias que perdem, nesses dias de pandem&ocirc;nio, entes queridos. Ou a ang&uacute;stia trazida por desastres ambientais, como o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em Minas Gerais, no dia 25 de janeiro de 2019, que deixou um rastro de destrui&ccedil;&atilde;o e mortes.<br /> <br /> Estamos vivendo momentos de afli&ccedil;&atilde;o e ang&uacute;stia. A ansiedade cai sobre n&oacute;s com seus reflexos sobre o cotidiano, paralisando projetos iniciados, afastando outros que ainda estavam na prancheta do planejamento e, acima de tudo, injetando em nosso esp&iacute;rito a incerteza, a d&uacute;vida, o medo. Por mais planejada que seja uma pessoa, ela se junta ao gigantesco cord&atilde;o dos desvalidos que se sentem perdidos por ter suas vidas desorganizadas.<br /> <br /> &Eacute; certo que a resili&ecirc;ncia e a coragem de enfrentar os mais terr&iacute;veis males fazem parte do roteiro da sobreviv&ecirc;ncia humana. Por isso, vemos perfilados na arena do combate gente de todos os calibres, homens e mulheres, jovens e velhos, dispostos a afastar amea&ccedil;as e a lutar pelo bem-estar. Mas o fato &eacute; que esse v&iacute;rus que contamina nossos corpos e atormenta nosso esp&iacute;rito causa mudan&ccedil;as em nosso dia a dia. Na vida de uns, produz profunda altera&ccedil;&atilde;o, em outros, provoca o reordenamento de tarefas cotidianas, introduzindo novos h&aacute;bitos, determinando rotas diferentes dos tra&ccedil;ados originais. Nossas vidas foram, sim, desarrumadas.<br /> <br /> Por mais que o empres&aacute;rio, o executivo de um grande grupo, quadros tarimbados e experimentados na arte de enfrentar desafios, acreditem que pouca coisa mudar&aacute; em suas vidas, o amanh&atilde; n&atilde;o ser&aacute; o mesmo. O trabalho assume nova modelagem com o enxugamento de estruturas, o home office, a simplifica&ccedil;&atilde;o da papelada, o redimensionamento de budgets, a procura incessante de inova&ccedil;&atilde;o, o uso da internet, enfim, as redes sociais funcionando como extens&otilde;es de nosso c&eacute;rebro e nossos bra&ccedil;os.<br /> <br /> Mas as mudan&ccedil;as de ordem material, em pleno curso, ter&atilde;o infinitamente menor impacto do que as forjadas por nossa mente. A come&ccedil;ar pelo conceito de tempo, morte e vida. S&ecirc;neca (4.aC &ndash; 65) j&aacute; pregava: &ldquo;N&atilde;o &eacute; curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida &eacute; suficientemente longa e com generosidade nos foi dada para a realiza&ccedil;&atilde;o das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferen&ccedil;a, quando n&atilde;o a empregamos em nada de bom, ent&atilde;o, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que j&aacute; passou por n&oacute;s sem que tiv&eacute;ssemos percebido. O fato &eacute; que n&atilde;o recebemos uma vida breve, mas a fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores&rdquo;. <br /> <br /> A cada dia dos recordes de mortos, somos levados a enxergar que a eternidade est&aacute; ali, a um palmo. Os dribles mentais que &agrave;s vezes costumamos fazer, pensando que temos ainda o vigor da adolesc&ecirc;ncia, a capacidade de saborear as coisas boas da vida, fenecem.<br /> <br /> O transl&uacute;cido espelho da realidade est&aacute; ali adiante de n&oacute;s. Como ia dizendo, no plano espiritual o facho das mudan&ccedil;as ser&aacute; bem luminoso. A solidariedade, por exemplo, &eacute; uma das sementes a germinar na seara dos valores. Viveremos com mais intensidade a virtude da amizade, que &eacute; a cola da fraternidade. Os amigos ser&atilde;o inseridos no c&iacute;rculo do compartilhamento, caracter&iacute;stica de uma sociedade convivencial. Bem sabemos que a rotina do cotidiano forma oceanos entre amigos, os la&ccedil;os v&atilde;o se desmanchando, o tecido social se esgar&ccedil;a na poeira do tempo. Por isso, teremos de batalhar para que o distanciamento n&atilde;o maltrate a integra&ccedil;&atilde;o espiritual, procurando retomar os caminhos encruzilhados do passado, evitando a competitividade leonina do presente, reconhecendo que o viver sob intenso sufoco corr&oacute;i a humanidade que nos habita.<br /> <br /> Teremos de recolocar a vida e toda sua intensidade no mais alto pedestal dos valores. Hoje, de tanto ouvirmos a numerologia da morte, este ato final da esp&eacute;cie torna-se banalizado. A imaginar &ldquo;um tanto faz, tanto fez&rdquo;, como se a vida n&atilde;o fosse o sagrado dom que Deus nos deu.<br /> <br /> Poderemos, sim, ser competidores, ambiciosos, her&oacute;is de grandes empreendimentos, sem esquecer, por&eacute;m, nossa identidade humana. Pin&ccedil;o Conf&uacute;cio: &ldquo;a humanidade &eacute; mais essencial para o povo do que &aacute;gua e fogo. Vi homens perderem sua vida por se entregarem &agrave; &aacute;gua ou ao fogo; nunca vi algu&eacute;m perder a vida por se entregar &agrave; humanidade&rdquo;.<br /> &nbsp;<br /> <img src="https://www.novoeste.com/uploads/image/artigos_gaudencio-torquato_jornalista-professor-usp-consultor-politico.jpg" width="60" hspace="3" height="80" align="left" alt="" /><br /> <br /> Por <i><b>Gaud&ecirc;ncio Torquato</b></i> &eacute; jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor pol&iacute;tico Twitter@gaudtorquato - Acesse o blog <a href="https://www.observatoriopolitico.org/" target="_blank"><span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i>www.observatoriopolitico.org</i></u></span></a><br /> <br />