Na escrivaninha com Heródoto

16 de maio de 2021 às 11:10

Dartagnan da Silva Zanela
Todo aquele que, sinceramente, gosta pra caramba de deitar suas vistas nas p&aacute;ginas fatigadas da hist&oacute;ria, n&atilde;o deve, jamais, prender-se unicamente &agrave;quilo que convencionalmente chamamos de &ldquo;fatos&rdquo; porque, fazer isso, seria por demais perigoso.<br /> &nbsp;<br /> Qualquer um que realmente deseje solver a verdade - que &eacute; o tutano da hist&oacute;ria, como nos ensina o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen - que est&aacute; subjacente aos fatos, deve se perguntar qual &eacute; o significado desses ditos cujos para o desenrolar dos acontecimentos, para os sujeitos hist&oacute;ricos envolvidos nas tretas de antanho, para as testemunhas desses furdun&ccedil;o e, tamb&eacute;m, para os int&eacute;rpretes desses acontecimentos e, naturalmente, para n&oacute;s mesmos.<br /> &nbsp;<br /> Toda narrativa hist&oacute;rica carrega em suas sinuosas linhas uma multiforme gama de valores; valores esses que, ao seu modo, organizam a percep&ccedil;&atilde;o que os autores da narrativa querem que tenhamos dos acontecimentos a muito vividos e que, por isso mesmo, n&atilde;o foram nem vividos, nem testemunhados por n&oacute;s.<br /> &nbsp;<br /> Ali&aacute;s, n&oacute;s tamb&eacute;m, quando lemos uma e outra narrativa hist&oacute;rica acabamos, sem querer querendo, organizando as informa&ccedil;&otilde;es que coletamos a partir de uma gama de valores que carregamos em nossa algibeira.<br /> &nbsp;<br /> Nesse sentido, como nos ensina o historiador Jos&eacute; Hon&oacute;rio Rodrigues, todo aquele que realmente for se dedicar ao estudo das linhas da &ldquo;mestra da vida&rdquo; deve, de certa forma, ter em mente que seu estudo deve estar focado em articular o que est&aacute; desarticulado e, quando tudo est&aacute; concatenado, deve-se indagar sobre os valores que est&atilde;o dando esse ou aquele sentido aos fatos.<br /> &nbsp;<br /> Sendo assim, fica mais do que patente que para nos dedicarmos de forma amorosa e abnegada &agrave; procura pela verdade, que se encontra oculta nas tramas do passado, &eacute; imprescind&iacute;vel que se compreenda que o caminho a ser percorrido n&atilde;o &eacute; uma linha reta, mas sim, um tra&ccedil;ado tremendamente sinuoso e acidentado.&nbsp; &Eacute; fundamental que tenhamos em mente que a caminhada &eacute; longa, cansativa e, muit&iacute;ssimas vezes, desgastante; por&eacute;m, gratificante, como toda jornada sincera rumo &agrave; constru&ccedil;&atilde;o do conhecimento.<br /> &nbsp;<br /> Ou seja, podemos afirmar com relativa tranquilidade que a constru&ccedil;&atilde;o do conhecimento hist&oacute;rico, a respeito de qualquer meandro do passado, seja ele remoto ou recente, se d&aacute; na intera&ccedil;&atilde;o dial&eacute;tica entre o que aconteceu com os poss&iacute;veis significados que s&atilde;o atribu&iacute;dos ao acontecido que agora habita a arena de nossa consci&ecirc;ncia individual. E &eacute; justamente a&iacute; que a porca torce o rabo de vereda.<br /> &nbsp;<br /> Digo isso n&atilde;o por maldade, mas por advert&ecirc;ncia. N&atilde;o podemos fechar nossos olhos para um tra&ccedil;o leviano que se faz presente na alma humana que, muitas vezes, nos leva a termos uma conclus&atilde;o pronta e definitiva sobre certos assuntos, sem nunca termos, realmente, realizado um estudo serenamente dirigido, tal qual hav&iacute;amos sugerido nas linhas anteriores. Quem nunca cometeu esse disparate que atire o primeiro pacote de bolacha.<br /> &nbsp;<br /> Talvez, alguns bons exemplos do que estamos falando sejam as opini&otilde;es desencontradas, disparatadas e, &agrave;s vezes, maliciosas, que s&atilde;o emitidas sobre a independ&ecirc;ncia do nosso pa&iacute;s, a proclama&ccedil;&atilde;o da rep&uacute;blica no Brasil e o golpe [ou contragolpe] de 1964. Esse &uacute;ltimo, s&oacute; de mencion&aacute;-lo, j&aacute; gera um revert&eacute;rio daqueles nas v&iacute;sceras de muitos.<br /> &nbsp;<br /> Mas vamos diretamente ao ponto desse conto: se voltarmos nossos olhos para o quartinho escuro de nossa mem&oacute;ria, atrav&eacute;s da janela entreaberta de nossa consci&ecirc;ncia, para darmos uma espiada naquilo que realmente sabemos a respeito desses acontecimentos, bem provavelmente, teremos uma resposta cabal, definitiva, a respeito dos tr&ecirc;s, especialmente com rela&ccedil;&atilde;o ao &uacute;ltimo. Por&eacute;m, se formos inquirir sobre as fontes que n&oacute;s realmente deitamos nossas vistas para chegarmos a essa ou aquela conclus&atilde;o, veremos, com vergonha, se a tivermos e formos sinceros, que possivelmente o nosso conhecimento restringe-se a meia d&uacute;zia de lugares-comuns colegiais que s&atilde;o repetidos sem parar, aqui e acol&aacute;.<br /> &nbsp;<br /> Como nos ensina o historiador venezuelano Jos&eacute; Luis Solcedo-Bastardo, em n&oacute;s, muitas vezes, &eacute; preponderante um forte subjetivismo que nos leva comumente a buscar apenas aquilo que serve para confirmar nossos preconceitos, que afetuosamente chamamos de convic&ccedil;&otilde;es, silenciando tudo o que, porventura, possa se opor a imagem pr&eacute;via que temos em nossa mente sobre o acontecimento ou personagem hist&oacute;rico que esteja no centro de nossa aten&ccedil;&atilde;o.<br /> &nbsp;<br /> Deixemos o trem mais simples: se formos tomar o fat&iacute;dico movimento civil/militar de 1964, veremos que, para alguns, foi apenas um golpe protofascista contra a democracia e, para outros, t&atilde;o somente um contragolpe revolucion&aacute;rio para salvar a democracia da amea&ccedil;a comunista.<br /> &nbsp;<br /> Obviamente que estou simplificando a encrenca, mas &eacute; essa forma simplificada que muitas vezes se projeta sobre este acontecimento hist&oacute;rico &ndash; sobre praticamente todas as tretas historiogr&aacute;ficas - e, com base nessa superficialidade, se sustenta aquela pose pomposa, com ou sem filtro de rede social, para mandar os outros irem estudar a tal da hist&oacute;ria.<br /> &nbsp;<br /> No fundo, bem no fundo, o que tanto a galera que est&aacute; &agrave; direita, como &agrave; esquerda, querem dizer quando est&atilde;o mandando o outro estudar hist&oacute;ria, principalmente, quando o assunto s&atilde;o os acontecimentos desse ano fat&iacute;dico, 1964, seria apenas que sua narrativa lhes parece mais veross&iacute;mil que a do outro e que, s&oacute; por isso, deveria ser aceita de forma inconteste como sendo a verdade.<br /> &nbsp;<br /> Detalhe importante: em termos hist&oacute;ricos, a mera verossimilhan&ccedil;a, seria apenas um discurso legitimador para uma a&ccedil;&atilde;o presente, n&atilde;o o produto de uma busca sincera pela compreens&atilde;o dial&eacute;tica da trajet&oacute;ria historicamente percorrida. De mais a mais, como nos ensina Salcedo-Bastardo, todas as concep&ccedil;&otilde;es que nos parecem &oacute;bvias e evidentes, muitas vezes escondem obst&aacute;culos tremendos para a compreens&atilde;o aut&ecirc;ntica.<br /> &nbsp;<br /> Tendo tudo isso em vista, penso que uma boa pergunta que dever&iacute;amos fazer para n&oacute;s mesmos e, por meio dela, avaliarmos as nossas reais inten&ccedil;&otilde;es frente &agrave; hist&oacute;ria e, para medirmos, o qu&atilde;o profunda &eacute; a nossa sinceridade, seria: o que estou dizendo a respeito dos acontecimentos de 64 s&atilde;o fruto de longos per&iacute;odos de solid&atilde;o e estudo, ou apenas algo que repito ad nauseam para legitimar minha posi&ccedil;&atilde;o pol&iacute;tica partid&aacute;ria no momento presente?<br /> &nbsp;<br /> Pois &eacute;, mas como hav&iacute;amos dito, o caminho para o conhecimento hist&oacute;rico n&atilde;o &eacute; linear. &Eacute; sinuoso e cheio de obst&aacute;culos pelo meio do caminho que, invariavelmente, nos surpreendem pra caramba. E, para ser franco, penso que &eacute; justamente a&iacute; que reside o barato dos estudos feitos junto &agrave; escrivaninha de Her&oacute;doto.<br /> &nbsp;<br /> E o resto &eacute; o que &eacute;: resto.<br /> &nbsp;<br /> Escrevinhado por <i><b>Dartagnan da Silva Zanela</b></i>, professor e cronista - dartagnanzanela@gmail.com