A escravidão que nos habita

16 de maio de 2021 às 11:11

Victor Missiato
Nos &uacute;ltimos anos, a celebra&ccedil;&atilde;o da aboli&ccedil;&atilde;o da escravatura no treze de maio costuma ser sobreposta pelo vinte de novembro da consci&ecirc;ncia negra. Da cr&iacute;tica a celebra&ccedil;&atilde;o de uma lei assinada por uma princesa branca, herdeira de um regime pol&iacute;tico alicer&ccedil;ado pela escravid&atilde;o, a uma data de resist&ecirc;ncia, em homenagem a um inventado her&oacute;i preto, cuja vida, vista pelas lentes do tempo presente, em nada coaduna com ideais de liberdade e igualdade, instrumentalizamos a luta contra o racismo reduzindo sua pot&ecirc;ncia &agrave; milit&acirc;ncia pol&iacute;tica. <br /> <br /> Embora reconhe&ccedil;o a fundamental import&acirc;ncia em politizar o problema do racismo no Brasil, sua luta pelo reconhecimento e equidade fraqueja desde 1888, quando a escravid&atilde;o enquanto trabalho social tornou-se obsoleta perante o desenvolvimento do mundo do trabalho na modernidade brasileira. Sendo assim, o racismo moderno, fruto de muito debate cient&iacute;fico e &quot;comprova&ccedil;&otilde;es&quot; acad&ecirc;micas, que pautaram a ci&ecirc;ncia por todo o s&eacute;culo XIX e parte do s&eacute;culo XX, tamb&eacute;m &eacute; uma obra cotidiana da sociedade atual. E n&atilde;o apenas pelos atos de viol&ecirc;ncia f&iacute;sica, simb&oacute;lica ou verbal. O racismo comp&otilde;e o universo imagin&aacute;rio, visual, olfativo e relacional de toda a sociedade. <br /> <br /> Em tempos pand&ecirc;micos, a ci&ecirc;ncia passou a ser utilizada como um elixir contra qualquer tipo de negacionismo. No entanto, foi atrav&eacute;s do discurso cient&iacute;fico que o racismo se tornou estrutural na modernidade. As teorias presentes em diversos intelectuais das mais diversas correntes de pensamento estabeleceram uma verdade racista, que at&eacute; hoje impregna nosso mundo racional. <br /> <br /> Ao longo de v&aacute;rias d&eacute;cadas e gera&ccedil;&otilde;es, n&atilde;o nos deparamos com pacotes de fraldas com uma crian&ccedil;a negra estampada na embalagem. At&eacute; poucos anos atr&aacute;s, todo reality show colocava apenas um casal preto, e nas rela&ccedil;&otilde;es ali existentes, os pretos eram alijados das rela&ccedil;&otilde;es amorosas ou eram exaltados como uma pe&ccedil;a ex&oacute;tica no mostru&aacute;rio da &quot;toler&acirc;ncia&quot; branca, como presenciamos com Babu e Thelma no Big Brother Brasil 2020. Atualmente, quase nenhuma propaganda de perfume exalta a figura da negritude a partir de suas caracter&iacute;sticas qu&iacute;micas, seus cheiros, hist&oacute;rias e belezas. Por v&aacute;rias d&eacute;cadas, o preto brasileiro foi admirado apenas em cima de um palco, como nas representa&ccedil;&otilde;es sociais presentes no carnaval e no futebol. Outra inquieta&ccedil;&atilde;o: muitas vezes observamos que pretos s&atilde;o considerados belos, quando possuem alguma caracter&iacute;stica facial &quot;suave&quot; ou quando alinham seu corpo para se adequarem &agrave; est&eacute;tica de um manequim caucasiano. Os exemplos s&atilde;o milhares. O medo do preto caminhando na rua, a raridade em vermos matrim&ocirc;nios entre pessoas com cores de pele distintas, os coment&aacute;rios na mesa do jantar, presentes em diversos encontros familiares. <br /> <br /> Compreende-se atrav&eacute;s destes e de v&aacute;rios outros exemplos, que a dial&eacute;tica da modernidade produziu o racismo contempor&acirc;neo. Ao mesmo tempo, emancipadora e revolucion&aacute;ria, a modernidade produziu seus padr&otilde;es e modelos, conservando uma est&eacute;tica. Romper tais paradigmas significa n&atilde;o apenas criar pol&iacute;ticas p&uacute;blicas ou inventar her&oacute;is. A modernidade antirracista do s&eacute;culo XXI necessita de um novo circuito de rela&ccedil;&otilde;es est&eacute;ticas.<br /> <br /> Por <b><i>Victor Missiato</i></b> &eacute; doutor em Hist&oacute;ria, professor de Hist&oacute;ria do Col&eacute;gio Presbiteriano Mackenzie Bras&iacute;lia. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Psicossociais sobre o Desenvolvimento Humano (Mackenzie/Bras&iacute;lia) e Intelectuais e Pol&iacute;tica nas Am&eacute;ricas (Unesp/Franca). <br />