A Tese do Marco Temporal: ataque final às culturas indígenas e à Constituição

04 de setembro de 2021 às 12:28

Flávio de Leão B
<div>&quot;<i><b>Quem habita este planeta n&atilde;o &eacute; o homem, mas os homens. A pluralidade &eacute; a lei da terra.</b></i>&quot;&nbsp;&nbsp;(Hannah Arendt).&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>O Supremo Tribunal Federal deu sequ&ecirc;ncia, na quinta-feira, 2 de setembro, ao julgamento do Recurso Extraordin&aacute;rio (RE) 1.017.365, relativo ao caso que envolve reintegra&ccedil;&atilde;o de posse sob terra ind&iacute;gena reclamada pelo povo ind&iacute;gena Xokleng, origin&aacute;rios do sul do Brasil e v&iacute;timas de violento processo colonizador que quase os conduziu &agrave; extin&ccedil;&atilde;o, especialmente a partir de 1914.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Referido Recurso Extraordin&aacute;rio pode ser considerado paradigm&aacute;tico, uma vez que contrap&otilde;e duas teses: de um lado, a tese do Indigenato e que reconhece o direitos dos povos ind&iacute;genas &agrave;s suas terras tradicionais, vale dizer, sob o ponto de vista jur&iacute;dico, por defini&ccedil;&atilde;o, as terras preexistentes ao pr&oacute;prio Estado brasileiro: de outro, a denominada &quot;tese do marco temporal&quot;, sustentada pelo Parecer n&deg; 001/2017 da Advocacia Geral da Uni&atilde;o e que vem sendo utilizado para lastrear o retardamento de demarca&ccedil;&otilde;es de terras ind&iacute;genas pelo Poder Executivo.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Se confrontada com o texto e com o esp&iacute;rito constitucional de 1988, a tese do marco temporal n&atilde;o resiste a qualquer an&aacute;lise s&eacute;ria, revelando-se frontalmente inconstitucional, na medida em que n&atilde;o guarda qualquer sustenta&ccedil;&atilde;o com a referida Carta de 1988. Seus argumentos, na realidade, v&ecirc;m eivados por falsas premissas e inver&iacute;dicas consequ&ecirc;ncias como, por exemplo, que a demarca&ccedil;&atilde;o as terras ind&iacute;genas inviabilizaria o agroneg&oacute;cio ou contrariaria os interesses do povo brasileiro.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Chama a aten&ccedil;&atilde;o, ainda, a utiliza&ccedil;&atilde;o do argumento de que fam&iacute;lias compostas por pequenos agricultores sofreriam consequ&ecirc;ncias sociais consistentes, especialmente, no comprometimento de seu sustento, tal como afirmado por um dos advogados que apresentou seus argumentos oralmente perante a Suprema Corte, na audi&ecirc;ncia da &uacute;ltima quinta-feira.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Ora, se considerarmos que no Brasil 1% das propriedades (n&atilde;o ind&iacute;genas) det&eacute;m metade da &aacute;rea rural, conforme j&aacute; informou a OXFAM BRASIL (<span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><a href="https://www.oxfam.org.br/noticias/no-brasil-1-das-propriedades-detem-metade-da-area-rural/" target="_blank">https://www.oxfam.org.br/noticias/no-brasil-1-das-propriedades-detem-metade-da-area-rural/</a></u></span>) e que o agroneg&oacute;cio vem avan&ccedil;ando a cada ano &agrave; custa do comprometimento da agricultura familiar, especialmente nas regi&otilde;es centro-oeste e norte, com a destrui&ccedil;&atilde;o dos biomas respectivos, expuls&atilde;o de fam&iacute;lias para as grandes cidades, al&eacute;m da concentra&ccedil;&atilde;o de renda e aumento da viol&ecirc;ncia no campo (<span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i><a href="https://reporterbrasil.org.br/2019/11/maior-concentracao-de-terras-revelada-pelo-censo-agropecuario-incentiva-desmatamento-e-conflitos/" target="_blank">https://reporterbrasil.org.br/2019/11/maior-concentracao-de-terras-revelada-pelo-censo-agropecuario-incentiva-desmatamento-e-conflitos/</a></i></u></span>), as terras ind&iacute;genas n&atilde;o parecem ser o problema.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Considere-se, ainda, conforme noticiado recentemente a partir de estudo divulgado pelo MapBiomas (<span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i><a href="https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/08/27/terras-indigenas-sao-as-areas-mais-preservadas-do-brasil-nos-ultimos-35-anos-mostra-levantamento.ghtml" target="_blank">https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/08/27/terras-indigenas-sao-as-areas-mais-preservadas-do-brasil-nos-ultimos-35-anos-mostra-levantamento.ghtm</a></i></u></span>l), que as terras ind&iacute;genas s&atilde;o as mais preservadas nos &uacute;ltimos 35 anos, o que significa que a luta pela demarca&ccedil;&atilde;o e homologa&ccedil;&atilde;o das referidas terras &eacute; uma luta de toda a sociedade brasileira, caso pense nas futuras gera&ccedil;&otilde;es.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>A tese do marco temporal prop&otilde;e que ter&atilde;o direito &agrave;s terras ind&iacute;genas t&atilde;o somente os povos origin&aacute;rios que comprovem que, em 5 de outubro de 1988 (data da promulga&ccedil;&atilde;o da Constitui&ccedil;&atilde;o Federal) j&aacute; se encontravam na posse de suas respectivas terras e/ou que demonstrem que, na referida data, j&aacute; disputavam em ju&iacute;zo sua posse ou, ainda, que um conflito material pelas citadas terras possa ser comprovado.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Tal proposi&ccedil;&atilde;o viola frontalmente a Constitui&ccedil;&atilde;o da Rep&uacute;blica de 1988 em diversos dispositivos, especialmente seu artigo 231, al&eacute;m das normas internacionais &agrave;s quais o Brasil aderiu. Ignora, outrossim, a responsabilidade hist&oacute;rica do Estado brasileiro e de sua sociedade em rela&ccedil;&atilde;o ao genoc&iacute;dio ind&iacute;gena cometido nos &uacute;ltimos 521 anos, j&aacute; que, desde 1500, tais povos v&ecirc;m sendo espoliados. Recorde-se que em torno de 5 milh&otilde;es de indiv&iacute;duos ind&iacute;genas foram exterminados, direta ou indiretamente, inicialmente pelos colonizadores portugueses, posteriormente pelo Estado brasileiro e setores interessados no apossamento das terras tradicionais destes povos, na sua maioria, milenares.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Some-se a tal contexto, a exist&ecirc;ncia comprovada de 114 povos ou comunidades em isolamento volunt&aacute;rio, vale dizer, que n&atilde;o mant&ecirc;m contato com a sociedade dominante pois sua tradi&ccedil;&atilde;o oral informa que referido contato pode ser letal em face do hist&oacute;rico predat&oacute;rio desta mencionada sociedade que os envolve.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>E se a tese do marco temporal exige posse efetiva sobre a terra tradicional em disputa em 5 de outubro de 1988 ou, ainda, uma comprovada disputa judicial, como poderiam os povos isolados comprovar que disputam suas terras em ju&iacute;zo ou fora dos tribunais, se s&atilde;o exatamente povos isolados? Ainda, como poderiam comprovar disputas em ju&iacute;zo, se at&eacute; 1988 tais povos eram obrigados a viver sob a tutela do Estado?&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>N&atilde;o se pode vislumbrar qualquer racionalidade, l&oacute;gica hist&oacute;rica, tampouco &eacute;tica ou jur&iacute;dica na defesa de uma exig&ecirc;ncia de comprova&ccedil;&atilde;o de fatos que se tornaram inviabilizados exatamente pela a&ccedil;&atilde;o do Estado brasileiro e grupos interessados: se os povos ind&iacute;genas v&ecirc;m sendo sistematicamente exterminados e expulsos de suas terras ao longo da hist&oacute;ria brasileira, como exigir neste momento que em naquela data se encontrassem ocupando referidas &aacute;reas? S&atilde;o in&uacute;meros os exemplos das referidas espolia&ccedil;&otilde;es, como o povo Waimiri-Atroari, v&iacute;tima de genoc&iacute;dio pelo regime militar quando da constru&ccedil;&atilde;o da BR-174 e da Usina de Balbina; o povo Guarani expulso sob extrema viol&ecirc;ncia, para constru&ccedil;&atilde;o da Usina de Itaip&uacute;, como demonstram as imagens reveladas pelo The Intercept, em 2018 (ver <span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i><a href="https://theintercept.com/2018/06/12/fotos-funcionarios-itaipu-incendio-indigenas/" target="_blank">https://theintercept.com/2018/06/12/fotos-funcionarios-itaipu-incendio-indigenas/</a></i></u></span>) ou, ainda, o caso da di&aacute;spora do povo Krenak em 1953, diante de invas&otilde;es e pol&iacute;ticas desastradas pelo Servi&ccedil;o de Prote&ccedil;&atilde;o ao &Iacute;ndio (SPI) e pela FUNAI (<span style="color: rgb(0, 0, 255);"><u><i><a href="https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krenak" target="_blank">https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krenak</a></i></u></span>).&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Como enfatizado anteriormente, a defini&ccedil;&atilde;o de terra tradicional, consagrada pelo artigo 231 da Constitui&ccedil;&atilde;o Federal de 1988 e por importantes precedentes de Cortes internacionais expressamente reconhecidas pelo Estado brasileiro, envolve a ocupa&ccedil;&atilde;o de terras pelos povos ind&iacute;genas anteriormente ao nascimento do Estado brasileiro e das quais dependem para manter seu modo de vida, suas cren&ccedil;as, cosmologias e culturas.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Tal condi&ccedil;&atilde;o foi reconhecida pela mencionada Carta de 1988. Por tal raz&atilde;o, a tese do marco temporal n&atilde;o se sustenta, por qualquer &acirc;ngulo que seja analisada.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>O voto da Procuradoria-Geral da Rep&uacute;blica durante os debates ocorridos na sess&atilde;o solicitada pelo Ministro Alexandre de Moraes, exatamente visando a intensifica&ccedil;&atilde;o das reflex&otilde;es sobre tema t&atilde;o delicado e vital para a sobreviv&ecirc;ncia das culturas ind&iacute;genas do Brasil, seguiu no sentido dos argumentos acima elencados quando expressamente consignou pelo afastamento da tese do marco temporal em vista da &quot;tradicionalidade&quot; das terras ind&iacute;genas reconhecida pela lei suprema do Brasil, qual seja, a Constitui&ccedil;&atilde;o.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Nova sess&atilde;o dar&aacute; prosseguimento ao julgamento, no pr&oacute;ximo dia 8 de setembro de 2021. Que a Corte Suprema do Brasil realize seu destino e sua fun&ccedil;&atilde;o de guardi&atilde; da Constitui&ccedil;&atilde;o, afastando definitivamente a tese do marco temporal diante de sua clara inconstitucionalidade, a tempo de evitar que o Congresso Nacional aprove o PL 490/2007 que objetiva tornar lei, exatamente, a tese do marco temporal, dentre outras inconstitucionalidades.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Caso tal cen&aacute;rio se confirme, certamente o debate retornar&aacute; ao Supremo Tribunal Federal.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Por <i><b>Fl&aacute;vio de Le&atilde;o Bastos Pereira</b></i>, doutor e mestre em Direito membro do rol de especialistas da Academia Internacional dos Princ&iacute;pios de Nuremberg, al&eacute;m de Professor convidado da Faculdade de Servi&ccedil;o Social da Universidade Tecnol&oacute;gica de Nuremberg Georg Ohm (2020/2021) e professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.&nbsp;</div>