7 de setembro: mito fundador e o sequestro da história

06 de setembro de 2021 às 11:59

Daniel Carvalho de Paula
<div>Na&ccedil;&otilde;es s&atilde;o inventadas. Isso n&atilde;o significa que fatos hist&oacute;ricos conhecidos da maioria n&atilde;o tenham acontecido, mas quer dizer que a sele&ccedil;&atilde;o que se fez deles, atribui&ccedil;&atilde;o de significados e relev&acirc;ncia, s&atilde;o constru&ccedil;&otilde;es de pessoas e institui&ccedil;&otilde;es. N&atilde;o &eacute; &agrave; toa que se fundou em 1838, na capital do Imp&eacute;rio, o Instituto Hist&oacute;rico e Geogr&aacute;fico Brasileiro, com a miss&atilde;o de consolidar por escrito a biografia da na&ccedil;&atilde;o e seus limites territoriais em disputa. No centen&aacute;rio da Independ&ecirc;ncia do Brasil, coube a Taunay e ao Museu Paulista constituir o pante&atilde;o nacional. Era necess&aacute;rio dizer quem eram nossos her&oacute;is e em que dia do ano seriam celebrados. Todo pa&iacute;s tem seus mitos de origem estabelecidos.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>O 7 de setembro, como conhecemos, esconde a exist&ecirc;ncia de outros projetos e arranjos pol&iacute;ticos que concorreram entre si. Essas v&aacute;rias linhas de a&ccedil;&atilde;o visavam emplacar uma solu&ccedil;&atilde;o para o Brasil em meio &agrave; crise engendrada pelas revolu&ccedil;&otilde;es liberais ib&eacute;ricas, nas primeiras duas d&eacute;cadas do s&eacute;culo XIX. Revolu&ccedil;&otilde;es que reivindicaram a promulga&ccedil;&atilde;o de Constitui&ccedil;&otilde;es, corpo de leis gerais que a todos abarcasse. Documento que hoje &eacute; escarnecido por fac&ccedil;&otilde;es irrespons&aacute;veis como se n&atilde;o tivesse sido fundado na concep&ccedil;&atilde;o liberal de soberania popular, contra poss&iacute;veis atos de tirania.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Um grito dado &agrave;s margens pl&aacute;cidas do Ipiranga &eacute; o mito fundador da nacionalidade brasileira. D. Pedro I, a cavalo, guiando-nos &agrave; emancipa&ccedil;&atilde;o. A mem&oacute;ria costurada em torno da Independ&ecirc;ncia apresenta esse processo como algo inescap&aacute;vel, uma esp&eacute;cie de destino manifesto do Brasil e seu povo rumo &agrave; liberdade. Duas grandes tend&ecirc;ncias interpretativas se evidenciam: ou tudo n&atilde;o passou de um acordo entre elites, ou aquilo representou o patriotismo de grandes brasileiros contra a tirania lusitana. Esse dualismo acaba por torcer a narrativa para dobr&aacute;-la aos p&eacute;s de vis&otilde;es de mundo que se digladiam, refor&ccedil;ando a surdez e a miopia, nos negando uma vis&atilde;o mais cr&iacute;tica e polif&ocirc;nica da hist&oacute;ria.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Dado que, de forma geral, necessitamos de manifesta&ccedil;&otilde;es concretas daquilo que queremos crer, parece necess&aacute;rio e, talvez at&eacute; leg&iacute;timo, que datas e nomes sejam destacados do imenso tecido do passado para darem corpo palp&aacute;vel &agrave; na&ccedil;&atilde;o imaginada. O perigo est&aacute; sempre na usurpa&ccedil;&atilde;o desses s&iacute;mbolos feita em nome de atentados criminosos &agrave;s institui&ccedil;&otilde;es democr&aacute;ticas, penosamente estabelecidas. A polariza&ccedil;&atilde;o pol&iacute;tica em que estamos metidos &eacute; promovida por aqueles que precisam semear o sectarismo, pois n&atilde;o possuem o f&ocirc;lego de um projeto de pa&iacute;s, apenas a bile de um projeto de poder.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Saber mais sobre a constru&ccedil;&atilde;o hist&oacute;rica que nos trouxe ao 7 de setembro n&atilde;o deve estar a servi&ccedil;o de eliminar feriados do calend&aacute;rio. N&atilde;o se trata de mera iconoclastia, mas sim de nos prevenirmos dos icon&oacute;latras, adoradores de s&iacute;mbolos, que pretendem sequestrar a hist&oacute;ria e, sob tortura, faz&ecirc;-la repetir seu mantra antidemocr&aacute;tico, travestido de amor &agrave; na&ccedil;&atilde;o.&nbsp;</div> <div>&nbsp;</div> <div>Por <i><b>Daniel Carvalho de Paula</b></i> &eacute; professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel e Licenciado em Hist&oacute;ria, Mestre e Doutorando em Hist&oacute;ria Social, pela USP.&nbsp;</div>