“O verdadeiro tesouro do homem é o tesouro dos seus erros”. A frase é de Ortega y Gasset (1883-1955), um baluarte do movimento de renovação cultural e artística contra o modernismo. Para o filósofo espanhol, o erro é uma ponte para o aprendizado. Abro esta reflexão com uma indagação sobre o presidente eleito, que assume o comando do país nos próximos dias: Lula teria aprendido com seus erros? Estendo o questionamento aos integrantes do Partido dos Trabalhadores: aprenderam com o receituário dos erros cometidos durante os 13 anos de petismo no poder?
Pelo andar da carruagem, nesse momento em que Luiz Inácio nomeia seu Ministério, um trem com 37 vagões, afloram dúvidas. O entorno presidencial tem feição nitidamente petista. Do falatório que se ouve por todos os lados, ouve-se a crítica de que Lula sinaliza não querer fazer aquilo que prometeu na campanha: governar além do PT. É razoável aguardar a conclusão da escolha dos nomes para se ter noção exata da taxa do lulopetismo na próxima administração. A senadora Simone Tebet, fundamental para a vitória de Lula, já foi comunicada sobre a disposição do PT de não abrir mão da área de desenvolvimento social, o braço assistencialista do Bolsa Auxílio/Bolsa Família. Wellington Dias, ex-governador do Piauí e senador eleito, deverá ocupar a Pasta.
Argumentar que a vitória de Lula se deu por conta da frente ampla formada em torno de seu nome parece não mais colar. O PT não aceita: fomos nós que ganhamos a eleição. No velho estilo, diz: primeiro, eu; segundo, eu; terceiro, eu. Qual a razão deste rígido e imutável posicionamento? O partido nunca abdicou de sua condição de ente mais unitário e harmônico da estrutura partidária. Nunca deixou de contemplar a política visando alcançar hegemonia, sob a perpetuação no poder central.
Esta sombra paira sobre a mente de Lula. Que, na campanha, saiu da extremidade do arco ideológico para se aproximar do centro. Diante de uma Gleisi Hoffmann, presidente do partido, prometeu governar além das fronteiras do PT, recado que chegou a entusiasmar parceiros e aliados até então desconfiados. Lula mostra a face antiga. Expressa falas agressivas de quem não mudou. Não cultiva a humildade, aquela virtude do homem que sabe não ser Deus, como a define André Comte-Sponville.
Manda mensagens ao mercado, ao colocar a responsabilidade fiscal e responsabilidade social como oponentes, uma não coexistindo com a outra. “Por que toda hora falam que é preciso cortar gastos, é preciso fazer superavit, é preciso cumprir teto de gastos”? O tom que embalou suas palavras assustou, ainda mais quando garantiu que não mais haverá privatização de empresas estatais.
A escolha do ex-senador Aloizio Mercadante para presidir o BNDES fecha, por enquanto, a corrente de avisos ao mercado financeiro, apesar do esforço do futuro dirigente do banco de desenvolvimento para ganhar a confiança dos círculos de negócios.
Luiz Inácio sabe que terá mais dificuldades no novo mandato do que enfrentou em dois mandatos anteriores. Não contará com apoio maciço das forças congressuais. A articulação política exigirá muito jogo de cintura, dele e do ministro da articulação, um conciliador com boa imagem no Parlamento, o médico Alexandre Padilha. O quadro internacional, por sua vez, tenta tapar as crateras abertas pela epidemia do Covid 19. É oportuno alertar, que o vírus ainda é mortal, dando sinais de continuar a correr pelo planeta.
Só mesmo as pressões do PT no sentido de garantir hegemonia e não abrir espaços aos parceiros explica o comportamento do presidente eleito, o que resgata o velho palanque. Lula é o que sempre foi? Persiste a dúvida: mudou ou não? Não apreendeu com os escândalos do mensalão e do petrolão? Antes de prosseguirmos, lembremo-nos que foi injustiçado. O juiz Sérgio Moro politizou o julgamento.
Começa com uma condução coercitiva, quando nem havia sido intimado. O grampeamento de telefonemas dos advogados também foi ilegal. As delações de empreiteiros só podem ser usadas como fundamento para sentenças se estiverem acompanhadas por outras provas. Enfim, cometeram-se erros. Será que Lula, experiente na arte de articular, quer se vingar e passar uma borracha nas mudanças que acenou para emoldurar seu perfil?
A resposta está na índole do lulopetismo. Que transmite a impressão de optar pelo ideário de clivagens obsoletas: a luta de classes, pobres contra ricos, a conquista do poder pelo proletariado, a socialização dos meios de produção, o Estado paquidérmico, entre outras ideias. Se for este o escopo, será razoável apostar na continuidade da polarização. Em intensos debates sociais. Afinal, o país está rachado. Lula e o PT haverão de olhar para a borrasca que os espera. Tal ameaça vai exigir apoios das forças de centro para resistir às tempestades.
Por Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político