O passado e o presente escravista brasileiro

20 de março de 2023 às 11:47

Nas últimas semanas, foram revelados diversos casos de pessoas trabalhando em condições típicas de uma situação de escravização. As operações e os resgates colocam uma incômoda lupa naquilo que (quase) todos sabemos: o ser humano ainda é visto como instrumento de satisfação e realização -- sobretudo financeira -- do outro. Digo “ainda” porque essa já era a realidade do Brasil quando vigente o regime de escravização de pessoas.
 
Durante séculos, o ser humano foi transformado em objeto, confundindo-se com ferramentas e animais nas minas e lavouras e, assim, servindo à produção da riqueza nacional. Nas cidades, ainda que em menor escala (do ponto de vista quantitativo, mas igualmente repugnante sob a ótica da materialidade da escravização), pessoas foram escravizadas para realização de trabalho doméstico, locação ou realização de serviços das mais diversas naturezas, sempre para a comodidade ou ganho de seu “proprietário”.
 
O que a Lei Áurea fez, portanto, foi retirar dessas pessoas a condição jurídica de objeto e dar-lhes o direito de serem contratadas, em uma suposta condição de igualdade com seu contratante, para a realização de trabalho remunerado. Este, o contratante, deixava de pagar, à vista, uma vultuosa quantia ao mercador/traficante para fazê-lo parceladamente ao próprio trabalhador. A simplicidade de uma lei contendo apenas dois artigos (o primeiro extinguindo a “escravidão” no Brasil e o segundo revogando as disposições legais anteriores em contrário) é reveladora do único intuito abolicionista, em 1888.
 
A legislação trabalhista que se seguiu cuidou de frear o ímpeto explorativo do empregador ao reverberar, por aqui, o modelo social inaugurado no México e na Alemanha em 1917 e 1919, respectivamente. E, talvez, seja essa a origem do incômodo que o conjunto de normas de proteção do trabalhador frequentemente causa em muitos dos contratantes da mão de obra alheia, ainda que tais normas sejam insuficientes ou, por vezes, ineficientes.
 
O direito a um salário mínimo, limitação na jornada e garantia de condições seguras de trabalho, assim como a proibição do trabalho infantil conjugada com o direito universal de acesso à educação gratuita, tudo isso é negado ao (agora) sujeito de direito colocado em situação “análoga à escravidão”, para exaustivamente aproximar-lhe da condição outrora imposta às pessoas negras. E o objetivo disso é aquele mesmo citado ao início: fazer do empregado o instrumento de satisfação e realização -- sobretudo financeira -- de quem o emprega, em detrimento de sua plena condição de humanidade.
 
Os argumentos, já que não dá para chamá-los de motivos, são sempre os mesmos: são pessoas que estariam em uma situação pior se não estivessem empregadas; a legislação trabalhista é muito rígida e engessa o empregador; a carga tributária no Brasil é impeditiva de uma atividade plenamente lícita. Sem deixar de pontuar o frequente argumento de que a culpa é do próprio trabalhador, preguiçoso. O fato é que o pensamento escravista ronda a mente de muita gente que, escondida nos rincões do país, procuram passar desapercebidas para que continuemos a consumir seus produtos sem questionar-lhes a origem ou o processo produtivo de exploração predatória do meio ambiente e da dignidade humana.
 
Por isso, não bastam as operações e resgates. Sem diminuir-lhes as importâncias, as instituições devem agir colocando em prática a expropriação das terras em que emprega pessoas em condição de escravização, o que já consta do texto Constitucional de 1888, assim como é hora da sociedade civil se posicionar de forma mais incisiva em relação a essas empresas. Afinal, o texto da lei será sempre insuficiente se for visto como resultado pronto de uma sociedade em permanente (re)construção, e não como instrumento de transformação por todos nós, que somos capazes de economicamente mobilizarmos a estrutura social na direção das mudanças que evitem a perpetuação da exploração humana por uma sociedade permanentemente escravista.
                                                                                                   

Por Leopoldo Rocha Soares é professor de Direitos Humanos
e Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie (UPM), campus Campinas.