A sete meses e pouco para o pleito municipal, já é possível enxergar alguns traços no corpo do eleitorado. Abro com a pergunta: o eleitor brasileiro é fiel? Resposta: no sentido abrangente, não. Há grupamentos fiéis, particularmente entre estratos médios, formadores de opinião, segmentos engajados nos partidos, setores religiosos, imigrantes de sangue anglo-saxão e pequenos núcleos ideológicos. Os maiores contingentes permanecem amorfos, alheios ao cotidiano político, mudando de posição, de acordo com as circunstâncias e as necessidades mais imediatas.
À propósito, uma historinha que os franceses amam a liberdade, como a amante, a quem se ligam apaixonadamente ou de quem se separam depois de uma violenta briga; os ingleses amam a liberdade como a uma esposa fiel, em quem confiam e com quem mantém uma sólida relação, mesmo sem volúpia e atração; os alemães amam a liberdade como a uma abençoada avó, para a qual reservam o melhor cantinho perto da lareira, onde costumam esquecê-la. E os brasileiros amam a liberdade como amam algumas namoradas com as quais se relacionam no vigor dos 18 anos, quando dedicam noites intercaladas. (Isso está mudando).
A infidelidade do eleitor tem a ver com a incultura política que semeia florestas de desinteresse por todos os lados, incluindo centros mais evoluídos. Basta lembrar que os mesmos conjuntos eleitorais da periferia de São Paulo, por exemplo, elegeram políticos como Jânio Quadros e Luiza Erundina, Paulo Maluf e Marta Suplicy, Mário Covas e Tarcísio de Freitas (e lá atrás, Ademar de Barros), em campanhas em que se tornaram prefeitos da Capital e governadores do Estado. Nas veias eleitorais, corre um sangue versátil, inseminado nos tempos do Brasil-Colônia.
A sinuosidade, a desconfiança, a versatilidade, a capacidade de adaptação aos espaços são traços de nossa cultura, decorrentes das grandes lutas pela conquista do Interior, no início da colonização. A luta pela sobrevivência, a pressão da natureza, o mundo de hostilidades e a crescente litigiosidade formaram, entre outros fatores, o cinturão mutante que aperta o estômago nacional, sujeitando-o às circunstâncias, aos momentos, às veleidades da política. Os vetores de decisão do eleitorado são influenciados, ainda, por dois elementos que parecem paradoxais.
De um lado, um pessimismo galopante, que se faz presente nas locuções de que o “o país não tem jeito, estamos todos perdidos, não vale a pena lutar por isso etc”. Não há nada de novo debaixo do sol, “plus ça change, plus c'ést la même chose” (quanto mais muda, mais fica a mesma coisa). De outro, um otimismo extravagante, que evidencia a superlativa dose emotiva da alma nacional. Nesse sentido, as alavancas de força se apresentam no Carnaval, que acaba de envolver o país na folia dos desfiles de escolas de samba e cores, e até na esteira da bagunça que, em maior ou menor grau, transparece na fisionomia das cidades, nas querelas de motoristas no trânsito, na linguagem desaforada das ruas.
O pessimismo induz o eleitor a se afastar dos políticos, que ganham a pecha de “ladrões e corruptos”. Os perfis populistas levam a melhor, ao sintonizarem a imprecação popular. Não por acaso, o chavão “bandido bom é bandido morto, lugar de bandido é na cadeia”, toca forte no coração das massas. Pior é ver que os “bons bandidos” são aqueles que fogem de “cadeias de segurança máxima”, como está de Mossoró, no RN, onde dois presos perigosos fogem. Uma desmoralização do sistema de segurança pública.
Já o otimismo de nuances ufanistas tem também a ver com nossas tradições. Os passos iniciais da farra nacional se inserem na paisagem e na descoberta de belezas naturais, na exuberância da flora e da fauna, na garantia de Pero Vaz de Caminha de que “aqui, em se plantando, tudo dá”. Essa é uma qualidade do caráter nacional, marcada com os selos da displicência, da sensualidade, do ócio e da pachorra. As grandezas do Brasil afloram e são apresentadas por fantasiosas quantificações de nossos potenciais: o maior carnaval, o maior São João do mundo, o maior produtor de grãos, a maior bacia de água doce, as mulatas mais bonitas, as melhores iguarias, algumas das maravilhas do mundo.
Se o pessimismo é oposicionista, o otimismo tropical é situacionista, ou, em outras palavras, tende a reforçar o status quo. Infere-se, assim, que a vitória do Brasil nas Copas e eventos esportivos ajudam a impulsionar a catarse. E a catarse, com suas vertentes de emoção, vibração, êxtase e felicidade, acaba purgando pecados acumulados. A recíproca é verdadeira. A recente derrota do Brasil no futebol, perdendo para a Argentina, dia 11, na última rodada do Pré-Olímpico da Conmebol, tira o país dos Jogos Olímpicos de Paris-2024. Um vexame histórico para a equipe canarinho. “O pior vexame dos últimos anos”, alardeiam alguns.
Se o eleitor gosta de mudar de posição, se navega tanto pela nau do pessimismo quanto pelo navio do otimismo, o que se deve constatar é um jogo de participação duvidosa na onda eleitoral de outubro próximo. O navegante pessimista irá para a oposição; o otimista tende a querer a continuidade de uma travessia sem turbulências. Que o (e) leitor tire as conclusões.
Por
Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político