Onde está e para onde vai a esquerda no Brasil? Para começar, ela frequenta mais a boca e menos a consciência de nossos políticos. É um verbete que funciona como graxa para limpar perfis corroídos. Nos últimos tempos, tem perdido charme. Não incorpora mais o escopo do socialismo marxista, inspirado na brilhante análise de Karl Marx sobre a formação do capitalismo e a previsão de sua “catastrófica” evolução.
A “violência como parteira da História”, dogma apregoado por Engels e que se firmou na segunda metade do século 19, até que tentou fazer escola entre nós, nos idos de 1960, mas foi repelida pela ditadura militar. A redemocratização do país abriu espaço para vastas áreas no canto esquerdo do arco ideológico. Formava-se argamassa para acomodar as estacas do alquebrado socialismo revolucionário e os tijolos do liberalismo político e econômico.
Nem Estado mínimo nem Estado máximo, mas um ente de tamanho adequado. A essa composição se agregaram expressões como “capitalismo de face humana” e “socialismo de feição liberal”, tentativa de convergir eficiência econômica com bem-estar social. O nome de tudo isso? Social-democracia.
A formosa dama chegou ao Brasil em fins dos anos 1980, com interpretação do PSDB, cujos ideólogos escreveram um texto Os desafios do Brasil, sobre as crises da contemporaneidade, a textura da democracia social na Europa, as estratégias de crescimento e as políticas para o nosso desenvolvimento.
Ao ser concebida, a socialdemocracia brandia como escopo o estabelecimento do Estado de bem-estar social (baseado na universalização dos direitos sociais e laborais e financiado com políticas fiscais progressistas) e o aumento da capacidade aquisitiva da população. Essa meta tinha como alavanca o aumento dos rendimentos do trabalho e a intervenção do Estado nas frentes de gastos, a par da regulação de atividades-chave para a expansão econômica.
O fato é que o partido da social-democracia vive, hoje, a maior crise de sua vida, desde seu nascimento em junho de 1988. Infelizmente, no curso de sua história, não conseguiu equalizar as densidades eleitorais e a “paulistização” tucana virou marca. Sobre a sigla, recai a observação: tem muito cacique e pouco índio. E está longe das bases.
As fortes classes médias, as mais poderosas entidades e os contingentes laborais que vivem nas regiões Sudeste e Sul se ressentem da falta de um discurso consentâneo com suas expectativas. Que fonte categorizada do partido pode exprimir algo e merecer respeito? Fernando Henrique, o tucano-mor, seria o melhor porta-voz. Mas este, até pela idade, está à margem da vida política. Afinal, qual a mensagem do PSDB? Estaria ele engolfado pela onda que afoga os partidos social-democratas em todo o mundo?
A partir dos anos 70 a 80, a doutrina socialdemocrata ganhou novos contornos na esteira da globalização. As siglas mudaram, transformando suas bases eleitorais (categorias trabalhadoras) em classes médias, mais conservadoras e com maior acesso ao capital financeiro.
O Brasil ingressou nessa rota. Hoje, as teias sociais estão sendo bem costuradas, programas de distribuição de renda passaram a frequentar a mesa de todos os núcleos, a ideia de extinguir a miséria continua acesa, mas a receita do “velho socialismo” aparece de forma esporádica e, mesmo assim, sujeita a apupos.
Urge reconhecer que, por muito tempo, bateu-se bumbo no velho refrão: o liberalismo do centro do poder se curva ao Consenso de Washington. Deu certo. Em 2003, as “esquerdas” alcançaram a alforria, ganhando assento na cadeira presidencial, com Lula presidente. Mas as linhas gerais da política neoliberal foram preservadas. Aí veio o Brasil real, com sua velha cultura política, balcões de troca, “mensalões”. Soçobraram as últimas pilastras leninistas.
Bandeiras de todos os partidos foram jogadas na lavandaria para limpar os entulhos. Da lama saíram sanguessugas. Em suma, que matiz de esquerda se distingue nesse lamaçal? Traços quase indistintos de uma ou outra sigla nanica de entonação trotskista.
O velho PC do B não pode mais se classificar como ícone esquerdista. O PSOL, de Guilherme Boulos, o partido com maior bandeira esquerdista, tem se esforçado para morar no centro do arco ideológico. O PSTU praticamente não existe. O PT mantém na teoria o refrão esquerdista. Na prática, porém, o que se distingue em nossas plagas é um limbo, onde as siglas vegetam, cada qual pregando posições que margeiam a social-democracia, como liberdade política, controle social do mercado, organização da sociedade civil, igualdade social, inclusive igualdade salarial entre homens e mulheres.
Nada disso resiste às injunções do patrimonialismo, praga que consome a lavoura partidária. Por isso, ante a pergunta sobre os rumos da esquerda, a resposta varia de interlocutor. Para um direitista, ela está definhando. Para um integrante do centrão, virou um sinal de trânsito.
Para muitos, a biruta muda de posição a cada ciclo governativo no Brasil. Até porque o país tende a repelir as margens radicais. Nosso perfil – extensão territorial, sistemas econômico e tecnológico, infraestrutura, integração geoeconômica, cultura e organização social – se encaixa numa moldura social-democrata de tom progressista. Será mesmo?
Por
Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político