Em seu relatório anual de fim de ano sobre o “
Estado do Judiciário” (federal, no caso), o presidente da
Suprema Corte dos Estados Unidos, ministro John Roberts, observou que tensões entre os poderes da República e críticas a decisões judiciais são inevitáveis. Fazem parte do processo democrático.
Segundo relatório, ataques ‘ilegítimos’ a juízes ameaçam
a independência do Judiciário. FreepikJustiça dos EUA
Até mesmo juízes criticam seus colegas em votos dissidentes ou concordantes. São “críticas informadas”. No entanto, ataques “ilegítimos” a juízes, muitas vezes feitos por autoridades públicas, estão indo longe demais. E ameaçam a independência do Judiciário, necessária para os juízes decidirem com imparcialidade.
O relatório aponta quatro áreas de “atividades ilegítimas”, que “ameaçam a independência dos juízes e minam o Estado de Direito: 1) violência; 2) intimidação; 3) desinformação; 4) ameaças de desafiar decisões judiciais legalmente proferidas”.
“Juízes cometem erros, muitas vezes graves, porque não são mais infalíveis do que outras autoridades públicas. Mas isso não justifica esses tipos de ameaças”, escreveu Roberts.
Violência
“É claro que não há espaço para violência direcionada a juízes por fazerem seu trabalho. No entanto, nos últimos anos, houve um aumento significativo em ameaças identificadas em todos os níveis do Judiciário. O volume de ameaças e comunicações hostis direcionadas a juízes mais do que triplicou na última década”, diz o relatório.
Apenas nos últimos cinco anos, o U.S. Marshals Service, encarregado da proteção dos tribunais federais, dos juízes e ministros, investigou mais de mil casos de ameaça de violência. Deles, 50 resultaram em processos criminais contra os infratores.
Houve casos extremos. Em 2005 e 2020, por exemplo, familiares de juízes federais foram assassinados por assaltantes com a intenção de fazer sofrer magistrados que decidiram contra eles. Em 2022 e 2023, juízes estaduais em Wisconsin e Maryland foram assassinados em suas casas. Nesses dois casos, a motivação dos assassinos foi a não aceitação das decisões dos juízes, diz o relatório.
Intimidações
No que se refere a intimidações, elas não precisam ser necessariamente físicas para ameaçar a independência judicial, escreveu Roberts. Hoje, na era da computação, a intimidação toma formas diferentes. Litigantes decepcionados se enfurecem com decisões judiciais e usam a internet para pedir às pessoas que enviem uma mensagem ao juiz.
Algumas dessas mensagens promovem violência, incluindo ameaças de incendiar ou explodir o tribunal em que os juízes alvos da intimidação trabalham. Outra tática é a do doxing, isto é, a revelação pela internet de dados pessoais dos juízes, tais como seu nome, endereço residencial, local de trabalho, telefone de seu gabinete e de casa etc.
“Isso gera uma enxurrada de telefonemas irados, muitos deles recheados de palavrões, ao gabinete e à residência do juiz. E também motiva a presença de manifestantes ou de indivíduos armados à frente da casa dos juízes”, diz o relatório.
“Lamentavelmente, nos últimos anos, também têm ocorrido tentativas de autoridades públicas de intimidar juízes. Um meio de fazer isso é criticar uma decisão judicial, sugerindo imparcialidade do juiz, sem fundamentar suas alegações — a não ser a de que o juiz federal foi nomeado pelo presidente de um partido rival ou por causa de sua raça, gênero ou afiliação étnica.”
Roberts escreveu que tais tentativas de intimidação, incluindo sugestões de abrir um processo de impeachment de juízes federais cujas decisões desagradaram a algumas autoridades públicas, levaram a American Bar Association (ABA) e suas seccionais estaduais a sair em defesa dos juízes.
“Tentativas de intimidar juízes por suas decisões são inapropriadas e devem ser vigorosamente combatidas. Autoridades públicas certamente têm o direito de criticar o trabalho do Judiciário, mas devem estar cientes de que a intemperança em suas declarações pode provocar reações perigosas por parte de outros.”
Desinformação
A divulgação de informações falsas — ou de desinformação — é uma forma de atacar a integridade do Judiciário e dos juízes. Esse problema se agravou na era moderna, em que as plataformas de mídia social disponibilizam um veículo para envenenar o ambiente judicial.
“O melhor antídoto para combater a epidemia de desinformação é a educação cívica, um projeto que é endossado pelas entidades do Judiciário e da advocacia, bem como por acadêmicos das universidades.”
Essas intervenções das entidades em defesa do Judiciário são necessárias porque os juízes só se pronunciam por meio de decisões judiciais. “Não concedem entrevistas coletivas, como outros órgãos do governo.”
Mas é preciso fazer muito mais, incluindo um esforço coordenado, não só para combater a desinformação tradicional em escala nacional, mas também para confrontar o problema da desinformação que tem origem no exterior, diz o relatório.
Desafios a decisões judiciais
A ameaça final à independência do Judiciário é o desafio a decisões judiciais legalmente proferidas pelas cortes nas jurisdições competentes. Esse é o caso de atores públicos que se recusam a obedecer a uma decisão judicial.
“Dois dos principais pilares da República — a separação dos poderes e o exame judicial — criam uma tensão inevitável entre os poderes do governo. Isso mina a independência judicial, quando acontece — a não ser que os demais poderes sejam firmes em sua responsabilidade de executar as decisões das cortes” , diz o relatório.
“Sejam quais forem, populares ou não, as decisões das cortes devem ser seguidas”, afirma Roberts.
Exemplos de desrespeito a juízes
O relatório não cita nomes de autoridades públicas ao se referir a intimidação e desinformação. No entanto, a carapuça serve bem ao presidente eleito Donald Trump, entre outras autoridades. O juiz conservador-republicano Royce Lamberth, por exemplo, citou Trump ao falar de autoridades públicas.
O magistrado afirmou que Trump tentou “reescrever a história” ao criticar a condenação pela Justiça dos invasores do Congresso em 21 de janeiro de 2021, classificando-os como “reféns políticos”.
Outros exemplos: mesmo antes de ser presidente, Trump criticou duramente o juiz Gonzalo Curiel, que decidiu contra a Trump University. Trump declarou que o juiz foi parcial em sua decisão e que ele, “um juiz mexicano” (uma informação falsa), tinha um conflito de interesse por se opor à sua política de imigração.
Trump também chamou de preconceituosa a juíza Amy Jackson, que julgou casos envolvendo alguns de seus associados. E atacou um juiz, que chamou de “juiz de Obama”, porque o magistrado bloqueou sua política de concessão de asilo a imigrantes.
Trump criticou ainda juízes, incluindo alguns que foram nomeados por ele, por trancarem as ações que moveu para tentar invalidar o resultado das eleições de 2020. Ele declarou que o juiz Juan Merchan, que rejeitou seu pedido para trancar um processo contra ele, é “profundamente conflituoso”.