'Agrotóxicos foram feitos para matar', diz pesquisadora da Fiocruz

15 de fevereiro de 2025 às 18:14

agricultura/agrotóxicos
Desde 2008, com pequenas oscilações, o Brasil figura em primeiro lugar entre os países que mais consomem agrotóxicos no mundo. A situação ficou mais grave partir de 2019, quando o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) promoveu a liberação massiva de novos produtos e a desregulamentação das normas relacionadas ao uso dessas substâncias, apontadas como causadoras de problemas de saúde crônicos e agentes da catástrofe ambiental.
 

Reprodução/agriq.com.br/
 
Bem Viver traz uma entrevista com
Karen Friedrich sobre os impactos do uso de
insumos químicos pelo agro brasileiro
 

pesquisadora Karen Friedrich. Reprodução/epsjv.fiocruz.br/
O atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem tido dificuldades de intervir sobre o tema, por mais que o próprio mandatário tenha se pronunciado a favor do banimento de agrotóxicos já proibidos em outros países. O principal entrave está dentro do próprio governo, já que o Ministério da Agricultura e o lobby do agronegócio têm impedido o avanço de ações importantes para a transição agroecológica no Brasil, como o lançamento do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), adiado sucessivas vezes e que ainda aguarda seu lançamento.
 
Para entender melhor o tema, o Bem Viver, programa produzido pelo Brasil de Fato, conversou com Karen Friedrich, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membro do grupo temático sobre saúde e ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Confira:
 
 
Brasil de Fato: Karen, vamos começar pelo começo. O que são os chamados agrotóxicos? 
 
Karen Friedrich: Os agrotóxicos são substâncias químicas, com diversas características. Essas moléculas são desenvolvidas para matar. Os agrotóxicos têm várias características diferentes. Tem uns que são mais tóxicos, outros menos tóxicos, tem alguns que são cancerígenos, tem outros que são prejudiciais, por exemplo, para reprodução. Causam abortos espontâneos, causam infertilidade. Então a gente tem uma série de substâncias que individualmente causam vários problemas. 
 
Mas os agrotóxicos foram moléculas desenvolvidas no início do século 20, justamente para serem utilizadas como armas químicas de guerra. Foram usados na Primeira Guerra Mundial, foram usados depois na Segunda Guerra Mundial contra os inimigos. Se utilizava muito também para jogar sobre a vegetação, onde os possíveis soldados inimigos pudessem se esconder. 
 
Ali se jogava herbicida, aquele agrotóxico que seca a planta. Depois que a Segunda Guerra Mundial acabou, ali no início dos anos 50, essa indústria química muito envolvida inclusive em crimes de guerra – a gente sabe que substâncias químicas foram usadas nos campos de concentração – precisava continuar ganhando e ela vê na agricultura a possibilidade de pulverizar aquele produto que ela desenvolveu, e que naquele momento já não tinha mais um mercado.  
 
E onde o Brasil se encaixa nesse contexto? 
 
Nessa época o Brasil vivia uma ditadura militar. E a nossa ditadura, além de todos os outros horrores, também incentivou muito a instalação de fábricas, inclusive fábricas de agrotóxicos. Isso porque todo o hemisfério norte estava lançando políticas ambientais mais rígidas. Então passam a jogar isso para onde? Para o Sul Global. E aí a aquela ditadura, aquele governo militar, fez isso: vários planos de desenvolvimento do agronegócio, dentre eles, a instalação de fábricas, que depois geraram muito adoecimento, principalmente em trabalhadores nas décadas seguintes. 
 
Comparando de novo o cenário brasileiro com o internacional, a gente hoje é o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Esse dado é o dado da FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação]. 
 
A gente usa um volume imenso, mas além de usar em volume, são produtos que os Estados Unidos não usam mais, que a Europa não usa mais. Então a gente usa muita porcaria, muito produto que é obsoleto, que a Europa já reprovou porque era muito tóxico se encontrado na água. É o caso da atrazina, é que é um herbicida muito usado no Brasil. O acefato, que a Europa proibiu, é um inseticida que causa problemas neurológicos, muitos problemas ambientais. Então a gente tem vários agrotóxicos que outros países já proibiram há décadas e a gente ainda usa.  
 
Então desde 2008 o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos. A gente sabe que isso acontece em decorrência de uma política de incentivo ao agronegócio, à agricultura brasileira, que vem desde a ditadura e que os governos seguintes deram continuidade. 
 
Brasil: o paraíso da poluição 
 
A lista de produtos liberados no Brasil e ao mesmo tempo banidos em outros países aumentou. Como você avalia a possibilidade de 'banir os banidos', algo que tem sido defendido pelo próprio presidente da República?
 
A gente fez um levantamento de quais agrotóxicos são mais usados no Brasil. E vimos que 70% são de agrotóxicos reconhecidamente cancerígenos, que causam problemas hormonais ou reprodutivos, ou causam malformações em bebês. Ou seja, 7 em cada 10 litros. 70%, é coisa à beça, de produto muito tóxico e tóxico crônico. Quando a gente diz crônico, são aquelas doenças que vão levar muito tempo para aparecer.
 
A gente tem mais de 500 princípios ativos de agrotóxicos registrados no Brasil, que vão ser misturados entre eles ou com outras substâncias que geram mais de 2 mil produtos no mercado. Então, além de individualmente eles serem muito tóxicos, o que acontece na ponta? Eu, você, se a gente come um prato de comida num restaurante ou em casa com alimento que não é orgânico, a gente vai estar comendo ali uma mistura.
 
A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] publica resultados, de vez em quando, sobre o que tem de agrotóxico nos alimentos. A gente vê que mais de 30% são de misturas. Nos últimos resultados que ela divulgou, os dados por amostra apontam que um determinado tipo de alimento tinha 21 tipos diferentes de agrotóxico. Como eu falei, um agrotóxico pode causar um problema ou pode não causar nada, ou pode causar muito pouco. Mas nesse coquetel, a chance disso interagir e potencializar os danos é muito grave. 
 
Numa pesquisa que a gente fez, na qual levantamos o estado regulatório dos agrotóxicos autorizados no Brasil e nos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], vimos esse dado assustador, por exemplo, da Europa, onde quase metade do que a gente usa aqui está proibido lá. Na Índia também. Tem muitos produtos que a Índia proibiu e que o Brasil ainda mantém. A própria China, quando a gente fez essa pesquisa, tinha uma programação de proibir produtos mais tóxicos. A gente não. A gente estava no caminho inverso. 
 
Tem autores que chamam o Brasil de "Paraíso da Poluição", porque justamente as tecnologias mais sujas, a gente ainda mantém. No caso dos agrotóxicos proibidos, é óbvio que é importante para essas empresas que já não conseguem vender para a Europa e para os Estados Unidos. E aí eu não estou falando só do ponto de vista da saúde, do meio ambiente. Obviamente, se já foram proibidas por isso, é para a gente proibir também. Mas o que acontece? Essas substâncias usadas há décadas já vão desenvolvendo as próprias pragas, vão desenvolvendo resistência. É a mesma coisa. Não é a lógica do antibiótico hospitalar. De tanto usar indiscriminadamente, desenvolveram bactérias super-resistentes. Na agricultura a gente tem essas pragas que estão desenvolvendo resistência.  
 
Então esse modelo de produção baseada no uso desses químicos não é bom sequer para o agronegócio? 
 
Claro, isso não é bom para o agricultor e para o agronegócio. Isso é bom para a fábrica, para a Bayer, Basf, Monsanto, Syngenta etc, que estão querendo manter esse produto no mercado até o último segundo. Ela já tem outros produtos no lugar que outros países já usam, mas se o Brasil ainda aceita, vamos despejar no Brasil. 
 
Ou seja, o agronegócio também é enganado quando ele quer manter o acefato, quando ele quer manter o paraquat no Brasil, quando quer manter a atrazina, quando quer manter esses produtos que outros países já proibiram. Isso é ruim também economicamente. Eu falo do ponto de vista da saúde pública. São produtos que adoecerem, que matam, que geram câncer. 
 
E o Pronara?
 
E esse mesmo agronegócio tem feito seu lobby interno do governo federal para não deixar a pauta da transição agroecológica avançar, como o atraso da publicação do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara). Qual sua avaliação? 
 
Primeiro vamos explicar o que é o Pronara, porque parece que é uma revolução Bolchevique no campo, ou alguma coisa assim, e não é. O Pronara é o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos. Esse programa foi elaborado nos últimos anos do governo da presidente Dilma por diversos atores, não só do governo. O Ministério da Agricultura, do Meio Ambiente, da Saúde participaram, mas também organizações da sociedade civil. A Fiocruz estava lá, a Abrasco estava lá, o Inca [Instituto Nacional do Câncer] estava lá justamente nessa comissão que elaborou esse programa para reduzir agrotóxicos.
 
Então esse programa foi elaborado a partir do que a gente já tem de normas. Por exemplo, a gente tem a questão da vigilância, que precisa fazer monitoramento da água. Isso não é só para agrotóxico, isso é para desde coliformes fecais, a metais, a substâncias como agrotóxicos e outras. Então a gente já tem essa obrigação de acompanhar, por exemplo, contaminantes na água e nos alimentos. 
 
Então o Pronara tem desde essa questão de fortalecer programas de pesquisa de agrotóxico em água e em alimentos, até a questão de incentivar a informação sobre os efeitos danosos, sobre os modos de produção menos nocivos. A gente tem ali orientações sobre tudo que já tem base na lei. O importante de ter um programa é justamente de ter recursos para implementar a lei. Então, assim, toda essa celeuma aí que o Ministério da Agricultura faz, que o agronegócio faz, não se sustenta. 
 
A gente sabe que o que está por trás disso é: a partir do momento em que a gente revelar como que tá de fato a água brasileira, como que estão de fato os alimentos que a gente consome, como é possível produzir sem tanto veneno? Como é possível o próprio agronegócio resistir sem os venenos mais tóxicos que as indústrias estão despejando aqui. Então é possível a gente adotar medidas que vão reduzindo os impactos nocivos dessa prática. E não é de um dia para o outro. E o Pronara organiza isso. Então por que ser contra isso? 
 
Em 2009 a gente fez um trabalho junto com a Anvisa, um relatório técnico. Quando quiseram proibir o endosulfan, que é um herbicida super tóxico, diziam: vai acabar a soja no Brasil, ninguém nunca mais vai comer feijão. Era um drama. Se você pegar os jornais da época, era uma chantagem. Eu sei que a gente proibiu o endosulfan e de lá para cá a soja só bombou. E só não plantam mais feijão porque estão deixando de plantar feijão para plantar soja, milho e cana. Ou seja, essa desculpa, isso que a gente chama de chantagem social do agronegócio, não está colando mais. Se a gente busca informação assim, independente, não está colando mais. 
 
É possível viver e reproduzir a vida, se alimentando com qualidade, sem o uso desses venenos? 
 
Bom, a gente viveu milhares de anos dessa forma. O negócio só desequilibra justamente quando a indústria química artificializa a agricultura, artificializa o campo. Eu falei um pouquinho ali da crise climática e o que acontece. Olhando os dados do IBGE, 70 milhões de hectares no Brasil são de plantis que usam herbicida, ou seja, esse agrotóxico que vai matar todas as plantas ali e só vai crescer a soja. 70 milhões de hectares de praticamente desertos. E que também têm o seu papel para contribuir nessa crise climática.  
 
É um cenário complicado, mas a gente a gente tem que fazer essa divulgação, esse debate. É fundamental pra gente, para a gente avançar nessas políticas, que de fato a gente incentive a produção de alimento. Alimento não é uma coisa barata. As pessoas não têm acesso a essa diversidade de alimentos. E aí, nesse ponto, o agronegócio e o agrotóxico têm o seu papel negativo em diminuir principalmente a área plantada, para alimento de verdade, que é o que a gente precisa. 
 
E os bioinsumos? São uma alternativa viável? 
 
O biosumo é usado pelos povos e comunidades tradicionais, nossos povos originários, de outra forma. Então eu acho que é também um resgate dessa nossa cultura, dessa nossa história de proximidade com o campo.
 
Toda a história do Brasil é toda movida pelas culturas, pelas extrações, pelo café com leite e como tudo isso influenciou nessa política e nossa história. Então permitir isso é facilitar o acesso desses produtos, que são potências da natureza em que a gente está organizando. A gente só espera que os grandes fabricantes também não tomem conta disso. Porque a gente sabe que em tudo que eles podem ver um mínimo de lucro, já estão de olho. E o importante é isso, esse resgate dessa nossa agricultura que produz alimento, que sempre produziu o alimento e sempre nos alimentou. 
 
E tem mais...
 
O Bem Viver mostra ainda caminhos possíveis e exemplos na produção de comida sem veneno.
 
Na China, o governo começou a investir, nos últimos anos, na redução do uso de agrotóxicos na agricultura. A cada ano, mais alimentos orgânicos são produzidos no país. 
 
Além disso, temos uma receita com tudo fresquinho do Armazém do Campo com Gema Soto: um delicioso e prático sanduíche de verão.
 
Em Belém (PA) uma exposição fotográfica itinerante traz a história do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST).
 
E já estamos em fevereiro, o que significa que o carnaval está chegando! Vamos saber mais sobre a festa de rua em Belo Horizonte (MG).
 
Quando e onde assistir? 
 
No YouTube do Brasil de Fato todo sábado às 13h, tem programa inédito. Basta clicar aqui.
 
Na TVT: sábado às 13h; com reprise domingo às 6h30 e terça-feira às 20h no canal 44.1 – sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC.
 
Na TV Brasil (EBC), sexta-feira às 6h30.
 
Na TVE Bahia: sábado às 12h30, com reprise quinta-feira às 7h30, no canal 30 (7.1 no aparelho) do sinal digital. 
 
Na TVCom Maceió: sábado às 10h30, com reprise domingo às 10h, no canal 12 da NET. 
 
Na TV Floripa: sábado às 13h30, reprises ao longo da programação, no canal 12 da NET. 
 
Na TVU Recife: sábados às 12h30, com reprise terça-feira às 21h, no canal 40 UHF digital. 
 
Na UnBTV: sextas-feiras às 10h30 e 16h30, em Brasília no Canal 15 da NET. 
 
TV UFMA Maranhão: quinta-feira às 10h40, no canal aberto 16.1, Sky 316, TVN 16 e Claro 17. 
 
Sintonize
 
No rádio, o programa Bem Viver vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 11h às 12h, com reprise aos domingos, às 10h, na Rádio Brasil Atual. A sintonia é 98,9 FM na Grande São Paulo e 93,3 FM na Baixada Santista.
 
O programa também é transmitido pela Rádio Brasil de Fato, das 11h às 12h, de segunda a sexta-feira. O programa Bem Viver também está nas plataformas Spotify, Google Podcasts, iTunes, Pocket Casts e Deezer.
 
Por Leonardo Fernandes, do Brasil de Fato | Brasília (DF) 
Leia a íntegra da matéria no Brasil de Fato: https://www.brasildefato.com.br/